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Discutindo a partir das concepções de Trotsky com as idéias dominantes de nossa época
por : Christian Castillo , Emilio Albamonte

10 Aug 2005 |

«O capitalismo foi incapaz de desenvolver uma só de suas tendências até o fim. Assim como a concentração da riqueza não suprime a classe média, tampouco o monopólio suprime a competição, somente a sufoca e a contém.»
León Trotsky, “El marxismo y nuestro tiempo”

Não há dúvidas que nos últimos trinta anos uma mudança de cenário estratégico foi se conformando no panorama mundial. Esta mudança modificou tanto as relações de forças entre as classes fundamentais do capitalismo como o sistema de Estados, tal como estes se apresentaram no “mundo de Yalta”.

Entre as correntes de idéias dominantes (cuja influência ideológica e política se expressa, em distintos graus, ainda que nas correntes da chamada “extrema esquerda” ou “esquerda radical”) se configuraram, grosso modo, duas tendências. Por um lado, estão aqueles, que, pela “direita” ou pela “esquerda”, consideram que se produziu uma verdadeira mudança de época, produto da “globalização” ou “mundialização” ocorrida nas últimas décadas. Entre aqueles que sustentam o caráter “irreversível” dos “novos tempos”, há muitos matizes e diferenças, mas todos têm em comum a ten-dência a assinalar que teríamos sofrido mudanças de tal magnitude que teriam tornado obsoletos todos os conceitos com os quais a realidade foi analisada no século XX (ou, mais ainda, em toda a modernidade) e deixado sem base as distintas estratégias colocadas pela classe operária para enfrentar as suas condições de exploração e opressão.

Entre os que sustentam visões deste tipo “pela esquerda”, predomina a opinião de que teria ocorrido uma verdadeira ruptura histórica que teria modificado as bases nas quais sustentavam-se as estratégias predominantes em cento e cinqüenta anos de história do movimento operário, sejam as revolucionárias, postuladas pelos mar-xistas clássicos, ou aquelas reformistas que almejam voltar aos tempos em que o “Es-tado de bem-estar” garantia o “compromisso keynesiano” e o trabalho assalariado estável e formal “era hegemônico”. Vêem, inclusive, que a tendência ã decomposição das antigas relações sociais e as “novas subjetividades” surgidas do novo mundo “flexível” constitui mais que uma crise, uma oportunidade. Discutiremos com essas posições a partir do que é colocado pelo o que consideramos dois de seus principais expoentes, o sociólogo Zigmunt Bauman e o teórico autonomista Toni Negri.

Antagonicamente a eles se encontram os que insistem na catástrofe gerada pelos anos de neoliberalismo e questionam as correntes “globalizadoras” por so-marem-se ao coro da política dos grandes monopólios, debilitando assim, a força dos Estados nacionais. Também com matizes entre si (há desde fervorosos impulsio-nadores da União Européia até os que se iludem com o renascimento dos “popu-lismos” latino-americanos, e até os que vêem novas possibilidades reformistas nos EUA sob a condição de que Bush saia do governo), têm em comum a visão que é a restauração da “força estatal”, seja no plano nacional ou construindo Estados trans-nacionais, a melhor forma de combater a “mercantilização do mundo” e os “males da globalização” produzidos nos últimos anos. Discutiremos aqui considerando o colo-cado pelo filósofo norte-americano Richard Rorty e pelo sociólogo brasileiro Helio Jaguaribe.

Há também posições combinadas, como a dos teóricos da “segunda moder-nidade”, que, da mesma forma que os primeiros, sustentam que vivemos uma ver-dadeira “mudança de época” e, como os segundos, acreditam que não há agente algum que possa substituir o papel dos Estados, ainda que estes devam tomar formas “pós-nacionais” e passar de políticas “competitivas” a outras “cooperativas”. Aqui nossa polêmica será com o que colocam a esse respeito os representantes da “intelec-tualidade orgânica da Europa do capital”, entre os quais localizamos Ulrich Beck, Jürgen Habermas e Jacques Derrida.

Estas distintas tendências ideológicas, não obstante suas diferenças entre si, coincidem em considerar que a perspectiva da revolução proletária traçada pelo marxismo foi superada pela história. Para justificar suas posições realizam uma dupla operação ideológica.

A primeira consiste em apresentar um modelo caricaturado do marxismo, com base no que foi a “teoria” e a prática dos partidos stalinistas (a social-democracia foi abandonando progressivamente toda referencia em Marx). Este marxismo “oficial” foi teoricamente estéril e conservador, a codificação de uma série de dogmas que serviam meramente para justificar a adaptação da burocracia stalinista ã “coexis-tência” com a ordem capitalista. O marxismo foi assim transformado em uma “ideo-logia” que incorporava muitos dos traços do pensamento burguês da segunda metade do século XX: nacionalismo, economicismo, estadolatria, culto ao trabalho e ã produção, confiança cega na força dos “aparatos” e no progresso técnico, desprezo pela auto-organização das massas e por todo movimento espontâneo etc. É esta versão do marxismo a que, em geral, é atacada por teóricos de distintos tipos, que, como máximo, colocam que mantém validez uma ou outra posição traçada por algum dos “marxistas ocidentais” que desenvolveram suas elaborações em paralelo ao domínio dos stalinistas. Deixam de lado, contudo, toda referência ao legado de Trotsky, isto é, ao marxismo que se desenvolveu como alternativa revolucionária ao stalinismo.1 A segunda operação passa por tentar demonstrar que as transformações ocorridas no capitalismo contemporâneo teriam modificado substancialmente os fundamentos “estruturais” sobre os quais foi formulada a estratégia marxista. A “globalização”, a “nova revolução tecnológica”, o “fim do trabalho”, a aparição de “novos movimentos sociais”, conformariam de conjunto um quadro de situação no qual o marxismo teria ficado desatualizado e sem sustentação.

Nas duas últimas décadas do século XX as derrotas sofridas pela classe ope-rária a nível mundial favoreceram a difusão de tal ponto de vista. Os críticos do marxismo se valeram ainda do suposto “fracasso incontestável” do socialismo que significou a queda da União Soviética e dos regimes stalinistas na Europa do Leste, assim como o avanço das reformas pró-capitalistas na China. Porém até o fim de século algo da fumaça circundante começou a dissipar-se: seja porque o capitalismo - da crise asiática de 1997 ã das empresas “ponto com” em 2000 - mostrava que não havia sido capaz de superar suas contradições estruturais; seja porque distintas formas de resistência cobravam novos brios; seja porque Bush empreendia uma política imperialista “pura e dura” que deixava sem sustentação aqueles que tiraram conclusões apressadas e extrapoladas da retórica do “humanismo militar” dos tempos de Clinton. Está mudança se expressou também em uma maior difusão de autores marxistas ou “marxistizantes” que se confrontaram com os argumentos menos sólidos das teorias em voga. Todavia, tratassem-se de autores acadêmicos ou com prática militante, o dominante foram respostas vergonhosas, adaptadas em muitos casos a posições que, apresentadas em forma de “novidades”, constituem verdadeiras re-gressões teóricas e estratégicas.

Neste trabalho vamos demonstrar a falsidade destas duas operações ideo-lógicas, ressaltando a superioridade que, frente ás correntes ideológicas mencio-nadas, possuem o corpo teórico brindado por Marx e os marxistas “clássicos” que o seguiram no século XX. Dentre eles, Trotsky foi particularmente quem nos deixou a perspectiva estratégica e programática mais avançada na qual nos apoiarmo-nos hoje, produto tanto de seu particular talento teórico como pelo fato que sobreviveu vários anos a mais com relação aos outros grandes de sua geração revolucionária - como Lênin, Luxemburgo ou o próprio Gramsci -, enfrentando novos problemas frente aos quais teve que desenvolver a teoria e o programa marxistas. Não casual-mente, salvo exceções, evadir ou desestimar toda discussão com Trotsky é para os teóricos contemporâneos uma forma de deixar de lado aqueles que não entram nos cânones da vulgarização do marxismo ao qual gostam de tomar como adversário.2

Trotsky é alguém a quem dificilmente se pode tachar de dogmático, cuja obra vastíssima é o oposto da caricatura de um marxismo “duro” e “fechado” que apre-sentam os acadêmicos. Teve um papel protagonista na revolução russa de 1905 e depois na tomada do poder em outubro de 1917, construindo quase do nada o Exér-cito Vermelho e encabeçando junto a Lênin a III Internacional antes de sua burocra-tização, com os inestimáveis aportes programáticos que deixaram seus quatro pri-meiros congressos para todo o movimento revolucionário em nível internacional. Foi também quem mais viveu daquela grande geração marxista revolucionária que, e que em sua obra “madura” manteve a continuidade de tal tradição ensaiando respostas inovadoras a problemas como o ascenso do fascismo, o nazismo, os populismo la-tino-americanos ou frente ao desencadeamento da Segunda Guerra Mundial3. Se enfrentou com ã burocratização do Estado operário que havia contribuído a fundar e pagou com a sua vida por isto. Manteve uma conduta revolucionária exemplar até ser assassinado. Com a teoria da revolução permanente formulou uma “álgebra revolucionária” não superada até o dia de hoje; teoria que foi complementada e enriquecida com as formulações do Programa de Transição, que condensou toda a experiência da luta internacional da Oposição de Esquerda contra o stalinismo e desenvolveu um método para superar a “discordância de tempos” entre a maturidade das condições de putrefação do capitalismo e a crise de subjetividade revolucionária do proletariado. Trotsky, longe de conceber que a sociedade socialista se consumava em “noventa por cento” (Stálin) com a conquista do poder pelo proletariado, se antecipou a muitos debates contemporâneos defendendo não somente que a cons-trução do socialismo estava inevitavelmente condicionada pelos avanços da revo-lução no plano internacional, mas que no terreno “interno”, colocava um conjunto de problemas que não eram mecanicamente redutíveis aos planos econômico e político. Especialmente em um conjunto de trabalhos dos anos 1920 sustentou que com a classe operária no poder devia iniciar-se um período de transformação de todas as relações sociais: as relações de produção, as relações de distribuição, as relações entre homens e mulheres, jovens e adultos, professores e estudantes, as relações entre produção e técnica, entre trabalho e produção, entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre produção e ensino, entre produção e consumo culturais, entre o campo e a cidade nos países atrasados, e se quisermos, um verdadeiro processo de “revolução permanente” no terreno cultural, no sentido mais amplo do termo.

Quando afirmamos que o pensamento de Trotsky constitui uma verdadeira alternativa para o século XXI não o fazemos por um capricho dogmático, e sim porque cremos que sua obra é a que condensa de forma mais acabada a experiência da geração revolucionária do século anterior, e que nela existem elementos ines-timáveis para enfrentar os desafios de nosso tempo. Não porque não se tenham produzido importantes mudanças ou porque distintas elaborações realizadas não contenham elementos de verdade, mas porque, ao contrário do pensamento dialético de Trotsky, estas se caracterizam pelo predomínio de posições unilaterais, que negam as contradições que conformam o marco de nossa época. E também porque o objetivo ambicioso de construir um novo sistema social sem exploração nem opressão contrasta com a miséria estratégica do possibilismo que hoje nos circunda, apresente-se este em forma aberta e imediata ou mascarado na suposta realização de algumas de suas metas como resultado da capacidade do capital para saltar sobre suas contradições.

Se algo caracteriza as teorias predominantes nos últimos anos é o fato de apoiarem-se nas derrotas políticas da classe trabalhadora para naturalizar as con-dições emergentes da ofensiva capitalista, muitas vezes apresentadas como fe-nômenos resultantes das transformações científicas e técnicas, como se estas pu-dessem ser consideradas uma variável explicativa independente. Com o paradoxo de que isto é defendido por teorias que não vacilam em acusar superficialmente o marxismo por supostamente ser uma a mais das teorias que sustentam visões lineares do “pro-gresso” histórico.

Desde nosso ângulo, não recorrer a Trotsky para dar conta revolucionariamente dos desafios de nosso tempo seria fazer como um físico que não considerasse a obra de Einstein em suas novas investigações. Por isso, a operação ideológica de desa-creditar como “fora de moda” seu legado teórico e político não é inocente. É pretender que voltemos as costas a quem nos deixou os principais embasamentos teóricos e programático nos quais nos apoiarmos, os únicos que sustentaram-se no campo do marxismo (quem hoje pode reivindicar-se stalinista?).

Trotsky e as transformações da economia mundial capitalista

Coloquemos a prova nossas afirmações. No início dizíamos que era incontestável que nosso “marco estratégico” era divergente do que reinou no segundo pós-guerra durante a vigência do que se chamou a “ordem de Yalta”.

Tanto do ponto de vista da economia mundial, como do sistema de Estados e das relações entre as classes fundamentais (e na própria composição destas classes) vivemos alterações substanciais.

Vamos abordar estas transformações e confrontar com as interpretações de-senvolvidas sobre elas partindo de algumas considerações teóricas e metodológicas fundamentais realizadas por Trotsky.

Estamos em um debate com pontos de contato que o que se deu a fins do sé-culo XIX, quando o surgimento da “fase imperialista” do capitalismo levou a uma intensa discussão no seio do marxismo, onde, como hoje, a renúncia ã análise dia-lética facilitava as afirmações acerca de um capitalismo que se tornava mais ameno ã medida que se desenvolvia, de Eduard Bernstein a Werner Sombart. O crescimento do poder dos monopólios e o processo de internacionalização do capital era de tal magnitude que inclusive teóricos como Hilferding falaram da existência de um “ca-pitalismo organizado” e o crítico de Bernstein pelo lado da “ortodoxia”, Karl Kautsky, passou a defender a teoria do “ultra-imperialismo”, quer dizer, a tese que, como resumiu Mandel, postula que “a interpenetração internacional dos capitais está avançada ao ponto em que as divergências de interesses decisivos, de natureza eco-nômica, entre proprietários de capitais de diversas nacionalidades, desapareceram completamente”.

Mas, ao mesmo tempo, o marxismo se enriqueceu teórica e estrategicamente nesse período como não fazia desde os tempos de seus fundadores, com a obra daqueles que constituíram a terceira geração dos “marxistas clássicos”, encabeçada por Lênin, Trotsky e Luxemburgo, de acordo com a conhecida tipologia de Perry Anderson em suas Considerações sobre o marxismo ocidental4. No marco destes debates foram afiando-se as ferramentas que permitiriam o proletariado na Rússia conquistar o poder pela primeira vez, logo da tentativa derrotada da Comuna de Paris.

Ao final dos anos 1930, enquanto o mundo caminhava para um novo massacre imperialista, Trotsky recordava as discussões daqueles anos sobre a dinâmica do capitalismo:

O final do século passado e o começo deste se caracterizaram por um progresso tão assombroso do capitalismo, que as crises cíclicas pareciam não ser mais que moléstias “acidentais”. Durante os anos de otimismo capitalista quase universal os críticos de Marx nos asseguravam que o desenvolvimento nacional e internacional dos trusts, sindicatos e cartéis introduzia no mercado uma organização bem planejada e pressagiava o triunfo final sobre as crises. Segundo Sombart, as crises já haviam sido “abolidas” antes da guerra pelo mecanismo do próprio capitalismo, de tal modo que “o problema das crises nos deixa hoje em dia virtualmente indiferentes”. Hoje, apenas dez anos mais tarde, essas palavras soam como piada, porque o prognóstico de Marx se ma-nifesta hoje em dia em toda a medida de sua trágica força.5

Por sua vez indicava nesse mesmo artigo como em meio ã “grande crise” os analistas do jornal norte-americano The New York Times cometiam o mesmo erro metodológico que aqueles que haviam prognosticado um desenvolvimento capi-talista cada vez mais ameno. The New York Times questionava o marxismo por sustentar duas afirmações aparentemente contraditórias: que a crise que arrastava o capitalismo mundial era expressão da “anarquia capitalista”, ao mesmo tempo que a economia estava cada vez mais dominada por um punhado de monopólios, no caso norte-americano pelas “sessenta famílias” que o próprio Roosevelt havia denunciado. Trotsky respondia da seguinte maneira:

É notável que a imprensa capitalista, que pretende negar como pode a pró-pria existência dos monopólios, recorra a esses mesmos monopólios para negar como pode a anarquia capitalista. Se sessenta famílias dirigem a vida econômica dos Estados Unidos, The New York Times observa ironicamente: “Isto demonstraria que o capitalismo norte-americano, longe de ser anárqui-co e sem plano algum, encontra-se organizado com grande precisão”. Este ar-gumento erra o alvo. O capitalismo foi incapaz de desenvolver uma só de suas tendências até o fim. Assim como a concentração da riqueza não suprime a classe média, assim tampouco o monopólio suprime a competição, somente a sufoca e a contém. Nem o “plano” de cada uma das sessenta famílias nem as diversas variantes desses planos se encontram minimamente interessados na coordenação dos diferentes ramos da economia, mas sim no aumento dos benefícios de sua camarilha monopolista em detrimento de outras camarilhas e em detrimento de toda a nação. Em última instância, o choque de semelhantes planos não faz mais do que aprofundar a anarquia da economia nacional. A crise de 1929 estourou nos Estados Unidos um ano depois de Sombart ter declarado a completa indiferença de sua “ciência” com relação ao problema das crises6 (grifo nosso).

Como veremos, a maioria das mistificações que as teorias contemporâneas sobre a “globalização” sustentam, seja as que de alguma forma a celebram como as que se opõe a ela, numa defesa do “Estado” contra o “mercado”, caem no mesmo erro metodológico de não compreender que “o capitalismo foi (e é) incapaz de desenvolver uma só de suas tendências até o final”. Confrontando-nos com posições de alguns dos autores mais representativos destas posturas, trataremos de demonstrar que esta definição de Trotsky segue constituindo um ponto de partida insubstituível para dar conta da dinâmica do mundo contemporâneo.

Partimos, deste modo, da “lei” mais geral que Trotsky assinalou como carac-terística do desenvolvimento capitalista, a lei do desenvolvimento desigual e combinado, que seu autor formulou originalmente para dar conta das peculiaridades que explicavam que em um país atrasado como a Rússia czarista se houvesse a primeira revolução socialista da história:

As leis da história não tem nada em comum com o esquematismo pedante. O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, com a evidência e a complexidade que a caraterizam, não nos revela de antemão o destino dos países atrasados. Açoitados pelo látego das necessidades mate-riais, os países atrasados se vêem obrigados a avançar aos saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da cultura deriva-se outra que, na fal-ta de nome mais adequado, qualificaremos de lei do desenvolvimento com-binado, aludindo a aproximação das distintas etapas do caminho e a confusão de distintas fases, ã amálgama de formas arcaicas e modernas. Sem recorrer a esta lei, enfocada, naturalmente, na integridade de seu conteúdo material, seria impossível compreender a história da Rússia ou a de qualquer outro país de avanço cultural atrasado, qualquer que seja seu grau.7

Por último, recordaremos que o fato de que a economia mundial capitalista tenha excedido os limites dos Estados nacionais, apesar de como as teses “glo-balizadoras” apresentam a questão, não é na realidade uma afirmação nova para os marxistas. Se, como foi recordado por muitos dos trabalhos escritos há alguns anos por ocasião do 150° aniversário do Manifesto Comunista, a tendência ã interna-cionalização das forças produtivas foi indicada por Marx em meados do século XIX, no princípio do século XX o salto do capitalismo de sua fase inicial de “livre con-corrência” a seu estágio imperialista, levou a novos desenvolvimentos sobre as condições que apresentava agora a economia mundial e o que isto implicava para a estratégia revolucionária. No caso de Trotsky, foi a relação entre a economia capitalista como totalidade e a peculiaridade que suas tendências implicavam para o desen-volvimento russo o que lhe permitiu levantar originalmente a perspectiva da revolução permanente contra a interpretação mecanicista das teses de Marx sustentada pelos teóricos mencheviques. Assim pôde formular em Resultados e Perspectivas a audaz e inovadora aposta de que o proletariado russo conquistaria o poder dirigindo as massas camponesas e ostentando as bandeiras da revolução democrática, mas que, uma vez tomado o poder, se veria obrigado desde o primeiro momento a avançar sobre a propriedade capitalista, levando a revolução a se transformar de democrática em socialista. Perspectiva que se materializaria com o triunfo da revolução de outubro, onze anos mais tarde de escrito tal prognóstico. Mas nem Trotsky nem Lênin jamais consideraram que a conquista do poder por parte do proletariado russo em si mesma colocava a possibilidade de avançar para o socialismo, mas sim condicionavam esta perspectiva ao desenvolvimento da revolução na Eu-ropa, e em particular na Alemanha.

É assim que o stalinismo e suas teses sobre a “construção do socialismo em um só país” constituíram uma verdadeira regressão de uma afirmação que, previamente, era um verdadeiro sentido comum entre os distintos teóricos revolucionários. Trotsky colocava em A revolução permanente:

O marxismo parte do conceito da economia mundial, não como uma amálgama de partículas nacionais, mas como uma potente realidade com vida própria, criada pela divisão internacional do trabalho e pelo mercado mundial, que impera nos tempos atuais sobre os mercados nacionais. As forças produtivas da sociedade capitalista há muito tempo excedem os limites das fronteiras nacionais. A guerra imperialista foi uma das manifestações deste fato. A sociedade socialista há de representar em si mesma, desde o ponto de vista da técnica da produção, uma etapa de progresso em relação ao capitalismo. Propor como fim a edificação de uma sociedade socialista nacional e fechada, equivaleria, apesar de todos os êxitos temporais, a retroceder no desenvol-vimento das forças produtivas, detendo inclusive a marcha do capitalismo. Buscar, a despeito das condições geográficas, culturais e históricas do desen-volvimento do país que forma parte da coletividade mundial, realizar a propor-cionalidade intrínseca de todos os ramos da economia nos mercados nacio-nais, equivaleria a perseguir uma utopia reacionária (...) os traços específicos da economia nacional, por maiores que sejam, são parte integrante e em pro-porção a cada dia maior, de uma realidade superior que se chama economia mundial, na qual tem seu fundamento, em última instância, o internacionalismo dos partido comunistas.8 (grifo nosso)

Trotsky, da mesma forma que Lênin e Rosa Luxemburgo, considerava a economia mundial capitalista como uma totalidade interdependente e não como um mero agregado de economias nacionais. Na citação anterior pode se ver claramente como Trotsky tinha um ponto de vista teórico que, surgido de processos existentes já no início do século passado, adianta genialmente tendências que se expressariam potentemente com o crescimento na internacionalização das forças produtivas ocorrido nos últimos trinta anos. Partir das referidas considerações de Trotsky é indispensável para aproximar-nos da compreensão do ocorrido no período histórico recente, evitando as análises unilaterais tão habituais.

Em muito maior medida do visto na época de Lênin e Trotsky, mas reatualizando sua visão do capitalismo como uma totalidade mundial interdependente, hoje existem cadeias de produção integradas internacionalmente e temos países cujo principal papel é o de aportar indústrias montadoras de produtos realizados em outros Estados e regiões. Enquanto a produção tecnologicamente mais sofistica se concentra em um punhado de nações, outras que haviam desenvolvido, no calor de processos de “substituição de importações”, uma certa industrialização, retrocederam a ser essen-cialmente provedoras de matérias primas.

Como forma de aumentar seus lucros, os monopólios buscaram aproveitar as vantagens de cada setor da economia internacionalizada, incluindo formas de plani-ficação e coordenação do trabalho em outros tempos impensados, para o que se va-leram do desenvolvimento da informática, como um meio indispensável na hora de planificar a produção e colocá-la em consonância com uma demanda instável e em transformação constante. Mas tudo isto não levou a humanidade a um estágio superior nem a uma produção internacionalmente “coordenada” de conjunto; ao contrário, ao realizar-se de forma anárquica este processo favorece o aumento da desigualdade entre um punhado de países privilegiados e um mundo que segue debatendo-se na pobreza e na indigência, questão que se repete no interior de cada país, combinando a intelectualização de uma fração da força de trabalho com formas de exploração do trabalho assalariado que em muitos casos nada tem a invejar ás do capitalismo do sé-culo XIX. Os recursos com os quais a humanidade conta são imensos, mas a con-centração desigual da riqueza social alcançou também limites inéditos. Quer dizer que temos visto um processo de desenvolvimento crescentemente desigual e com-binado, com os profundos contrastes que expressam as ruas de qualquer grande me-trópole contemporânea.

Isto não significa que exista um mundo plenamente globalizado, onde o território ao qual se pertença já não tenha importância. Ainda que a pressão do mercado capi-talista mundial sobre os “mercados locais” seja hoje muito maior que em qualquer outro momento do século XX, hoje a produção que transpõe as fronteiras nacionais representa não mais do que 20% do produto mundial, e as filiais das empresas trans-nacionais contribuem com aproximadamente 10% do produto e da acumulação de capitais mundiais. O domínio alcançado pelo capital em regiões que lhe foram vetadas durante a segunda metade do século XX, incluindo a monumental reserva de força de trabalho alcançada na China, impõem crescentemente a tendência a preços inter-nacionais nas manufaturas, mas o crescimento do comércio mundial está concentrado entre os países do G-7 e alguns outros Estados “seletos”, como China, os chamados tigres asiáticos, Índia, Brasil e África do Sul. As finanças também atingiram um peso impressionante dentro dos negócios capitalistas, sendo o setor mais “globalizado” da economia a partir do uso privilegiado dos avanços informáticos. Mas este cres-cimento dos negócios especulativos do capital se explica porque é onde é mais fácil encontrar benefícios extraordinários, em detrimentos das dificuldades da valorização capitalista nos ramos industriais tradicionais, produto do incremento da “composição orgânica” do capital.

Assim, para ninguém que raciocine nos termos de Trotsky pode resultar uma novidade a afirmação dos teóricos “globalizadores” sobre que “não há soluções lo-cais para problemas globais”. Mais isto que é correto em um sentido estratégico transforma-se em seu contrário se o convertemos em um pressuposto. Diferentemente do que opinam estes teóricos, considerar que uma sociedade comunista não pode construir-se no terreno nacional não significa que para avançar em tal sentido pos-samos prescindir da necessidade de realizar revoluções sociais no terreno nacional que convertam-se em verdadeiras “trincheiras” para os trabalhadores e as massas exploradas de todo o mundo. Apesar da internacionalização das forças produtivas, como é possível pensar seriamente que os trabalhadores e as massas exploradas tomem o controle dos meios de produção, hoje mais desenvolvidos e em poder dos grandes monopólios, e os ponham a serviço de satisfazer as necessidades humanas sem quebrar o poder dos Estados capitalistas? Para avançar sobre o poder econômico capitalista seguimos necessitando inevitavelmente da conquista do poder político.

A insuportável unilateralidade dos teóricos “globalizantes”

Consideremos agora o que opinam sobre o mesmo processo autores repre-sentantes das teses que sustentam que a globalização ou mundialização teriam produzido uma verdadeira mudança de época.

Na obra destes teóricos pode-se notar, em maior ou menor medida, a convicção de que estamos frente a um capitalismo que conseguiu superar as contradições que o cruzaram desde suas origens, levando “suas tendências até o final”. Este se daria tanto no plano do processo de trabalho (onde segundo a visão de Negri a hegemonia do “trabalho imaterial” expressaria a realização das tendências indicadas por Marx em direção ao pleno domínio do “trabalho abstrato”, que teria tornado obsoleta a lei do valor), como na autonomia alcançada pelo capital em relação aos Estados nacionais, cuja existência seria uma simples obsolescência do passado. O capitalismo teria so-frido mutações transcendentais, mesmo que ainda não hajam surgido as formas políticas (ou, se se preferir, de “regulação”) que as expressem. Nesta situação, todo o pensamento político que predominou na “modernidade” teria se tornado obsoleto e deveria ser desprezado.

Um exemplo típico dessas analises de uma perspectiva “reformista” é a que sustenta, por exemplo, Zigmunt Bauman, um dos sociólogos mais destacados da atualidade. Em um de seus últimos trabalhos, A sociedade sitiada, insiste sobre as características que apresenta a época da “modernidade líquida” na qual vivemos, oposta ã “modernidade sólida” característica dos séculos XIX e XX, que foi analisada pela sociologia clássica:

A atual soberania política dos Estados não é mais que uma sombra da multifacética autonomia política, econômica, militar e cultural dos Estados de antigamente, modelada segundo o padrão do Totale Staat. Há pouco que os Estados soberanos de hoje possam fazer, e menos ainda que seus governos se atrevam a levar a cabo, para conter as pressões do capital, das finanças e do comércio (incluído o comércio cultural) de caráter globalizado. Se se vissem incitados a reafirmar suas próprias normas de justiça e propriedade, os go-vernos em sua maior parte replicariam que nada podem fazer a respeito sem “afugentar os investidores” e portanto atentar contra o PNB e o bem-estar da nação e todos seus membros. Diriam que as regras do jogo que estão obriga-dos a jogar foram dispostas (e podem ser revisadas ã vontade) por forças sobre as quais têm uma influência mínima. Quais forças? Forças tão anônimas como os nomes sob os quais se escondem: concorrência, condições de co-mércio, mercados mundiais, investidores globais. Forças sem residência fixa, extraterritoriais, diferente dos poderes eminentemente territoriais do Estado; e capazes de mover-se livremente ao redor do planeta, em contraste com as agências de Estado que, para o bem ou para o mal, se mantêm irrevogavelmente sujeitas ao solo. Forças cambiantes e fugidias, esquivas, difíceis de localizar e impossíveis de apanhar.9

Esta situação levaria a um interesse decrescente dos indivíduos sobre seus te-mas comuns, questão que é apoiada e ajudada por “um Estado que se mostra satisfeito de ceder tantas de suas antigas responsabilidades como lhe seja possível a interesses e preocupações privados”. Por sua vez, o próprio Estado encontra uma crescente impotência para manter o equilíbrio de suas contas dentro das próprias fronteiras ou para impor suas normas quanto ã proteção, a segurança coletiva, os princípios éticos e os modelos de justiça que mitigariam a insegurança e aliviariam a incerteza que mina a confiança dos indivíduos em si mesmos, condição necessária de toda participação sustentada nos assuntos públicos.

O resultado destes processos seria:

o crescimento da brecha entre “o público” e “o privado”, e o lento mas inexo-rável desaparecimento da arte da tradução recíproca entre os problemas pri-vados e os assuntos públicos, a energia vital de toda política. Contra Aris-tóteles, pareceria que a noção de bem e de mal em sua forma privatizada atual já não suscita a idéia da “boa sociedade” (ou do mal social, no caso); e qual-quer que seja a esperança de uma bondade supra-individual que se conjure, dificilmente seria conferida ao Estado.

Insiste por isso em que “não há soluções locais para problemas globais” e que

uma resposta efetiva ã globalização só pode ser global. E o destino dessa resposta global depende do surgimento e do estabelecimento de um cenário político global (enquanto distinto do “internacional”, ou para ser mais pre-cisos, interestatal). É esse cenário o que hoje em dia falta, de modo notável. Os participantes globais existentes, por razões óbvias, são particularmente resistentes em construí-la (...) São necessárias forças realmente novas para restabelecer e fortalecer um fórum de discussão verdadeiramente global que se adeqüe ã era da globalização; e essas forças poderão exercer-se somente passando por sobre ambas as classes participantes.10

A análise de Bauman está realizada dentro da tradição do que poderíamos chamar de sociologia crítica, com elementos de análise que fazem recordar o Wright Mills de A Imaginação Sociológica quando assinalava o “mal-estar” do homem contem-porâneo de seu tempo pela impotência para transformar suas “inquietudes pessoais” em “problemas públicos”. Mas se nos Estados Unidos da “guerra fria” o pragmatismo eclético de Mills não lhe permitiu ir além das teses “pessimistas” sobre as tendências irreversíveis ã “burocratização do mundo”, em Bauman suas agudas observações sobre as distintas modificações na experiência vivida de nosso tempo contrastam com sua adesão ás teses superficiais sobre a superação da sociedade de classe que não o permitem ir além de uma colocação minimalista ou uma exortação moral na hora de pensar como enfrentar os grandes flagelos de nosso tempo. Contraste, que, possi-velmente tem sua fonte em não considerar as sociedades em termos de “modos de produção”, como o marxismo, e sim pensar as relações sociais como algo que ocorre a partir de distintas “comunidades imaginadas” pelos indivíduos, um pouco da forma como faziam Durkheim e outros sociólogos não marxistas. Daí o porquê de o termo “capitalismo” ser quase um ausente em seu trabalho.

A argumentação de Negri em Império e outros textos posteriores situa-se nesta mesma sintonia de análise no que diz respeito ã existência de um novo cenário de época, ainda que de uma posição que se reivindica “comunista” e inclusive “revo-lucionária”. Partindo das críticas recebidas e de reconhecer o fato de que o livro que escreveu com Michael Hardt:

não se ocupa de algumas questões hoje fundamentais: por um lado, a forte insistência norte-americano sobre a unilateralidade da ação imperial; por outro, o aperfeiçoamento dos meios de controles que se estendem ã guerra e que ocasionalmente lhes são inerentes11,

Negri se volta em um trabalho recente sobre as “duas ou três teses nas quais se apóia a estrutura do discurso desenvolvido em Império”12. A primeira tese é que “não existe globalização sem regulação”. Justamente o Império seria a forma transitória de regulação que encontra a atual fase de globalização. A segunda tese é que:

a soberania dos Estados-nação está em crise. Crise significa que a soberania transfere-se do Estado-nação e se encaminha para outra parte. O problema é definir para onde; este conflito segue aberto. Por isso dizemos que a soberania imperial se encontra em um “não-lugar” (...) o Estado-nação já não tem sua centralidade sobre a cultura, sobre a língua e a informação, porque está con-tinuamente atravessado por correntes antagônicas e múltiplas entradas lin-güísticas e culturais que lhe subtraem a possibilidade de ter uma posição hegemônica e de dominar sobre o processo cultural.

Indica por último “uma terceira tese fundamental do trabalho de Império” que consiste em assumir que os fenômenos recém mencionados ocorrem:

dentro da relação de capital: está é a pretensão científica fundamental de Im-pério; e é evidente que aqui seguimos o rastro da doutrina marxiana. Natu-ralmente, esta estratégia marxiana está subordinada a uma experimentação nova e criativa, e ao sentido da originalidade das situações que analisamos. O conflito de classes em que estamos imersos, as experiências sentidas em re-lação ao poder, as práticas de resistência e de êxodo que vivemos, assim co-mo a atividade laboral que nos constitui são, com efeito, distintos dos que Marx experimentou. Segue sendo fundamental o fato de que é a luta, a divisão social da relação de capital, o que constitui toda realidade política.13

Por isso, diferentemente de Bauman, Negri insiste em que a conformação do Império é uma resposta ã constituição de um novo sujeito antagonista, a multidão, que, de Seattle ã América Latina, se expressou na conformação do “movimento dos movimentos”. Multidão cuja estratégia, segundo Negri, deveria assumir que a si-tuação, desde que foi formulado o pensamento revolucionário de Lênin:

mudou radicalmente; já não existe uma classe operária que lamente a ausência de um projeto de gestão da indústria e da sociedade, seja gestão direta ou me-diada pelo Estado. E ainda que esse projeto fosse reatualizável, não poderia ter um caráter hegemônico sobre o proletariado e/ou sobre a intelectualidade de massas, nem poderia cercear um poder capitalista deslocado para outros níveis (financeiros, burocráticos, comunicativos etc.) de domínio. No presente, pois, a decisão revolucionária deve basear-se em outro esquema constituinte que não coloque como preliminar um eixo industrial e/ou de desenvolvimento da economia, mas que, através daquela multidão na qual se configura a intelec-tualidade de massas, proponha o programa de uma cidade liberada na qual a industria ceda frente ás urgências vitais, ã sociedade frente ã ciência, e o trabalho frente ã multidão. A decisão constituinte se converte, aqui, em multidão.14

Em ambos autores, podemos ver uma matriz similar de erro analítico: pensar fenômenos que se desenvolvem em uma só direção, movendo-se segundo uma ló-gica homogênea e não desigual e combinada. Disso decorrem as unilateralidades de suas posições, que faz com que, ainda que partindo de uma série de fatos certos, che-guem a conclusões falaciosas.

Centrando-nos na análise de Negri, os fatos reais de que parte são:

i) que os grandes monopólios e corporações aumentaram enormemente seu poder nos últimos trinta anos, pondo sob seu controle direto áreas da economia que no pós-guerra estiveram sob o controle estatal;

ii) conquistaram, novos mercados territoriais e puseram novas esferas da ativi-dade que humana sob seu domínio;

iii) que as potenciais dominantes tendem a buscar que o controle econômico que exercem em áreas do mercado “global” se expresse em instituições jurídicas e políticas supranacionais;

iv) que estes dois fenômenos levaram a um certo debilitamento da “soberania” dos Estados nacionais, ainda que em forma desigual segundo os casos que se con-siderem;

v) que os desenvolvimentos científicos e técnicos agudizam a contradição entre uma produção crescentemente socializada e complexa e a imposição de uma medida (“miserável”, nos dizeres de Marx) que permita a sua valorização e seu intercâmbio mercantil;

vi) que a imigração massiva nos países imperialistas está produzindo mudanças importantes na composição étnica da população, gerando uma crise crescente de “integração” da nova força de trabalho imigrante, como o fortalecimento de tendências xenófobas em partes significativas, ainda que ainda minoritárias, da população nativa;

vii) que se impuseram novas condições de sujeição da força de trabalho em ní-vel mundial, sob o duplo látego da precarização e o desemprego;

viii) que, especialmente nos países centrais, cresceu em relação ã indústria os assalariados em diversos setores das atividades catalogadas como “serviços” e que, mais em geral, os últimos trinta anos registraram importantes mudanças na composição da classe trabalhadora;

ix) que entre essas se encontram sua feminização e o crescimento em importância da fração da força de trabalho “intelectualizada”;

x) que o desenvolvimento dos meios de comunicação de massas eletrônicos, e seu monopólio pelas grandes potências, tende a uma difusão inédita de valores da “cultura dominante”;

xi) que ligados aos negócios das grandes corporações e a tecnocracia admi-nistrativa, acadêmica e científica existem importantes setores das “elites” dos distintos países que vive de forma crescentemente “transnacionalizada”.

Destas premissas deduz uma série de conclusões que o levam a afirmar que estamos frente a uma verdadeira “mudança de época” que se caracterizaria por:

i) a livre mobilidade absoluta do capital em todas suas áreas e a constituição de um capital “global” que deixaria como algo do passado os conflitos interimperialistas que caracterizaram o século XX;15

ii) o desaparecimento dos Estados nacionais e sua substituição por formas “globais” de soberania, que deixariam sem sustentação toda política de tomada ou conquista do poder do Estado;

iii) uma distribuição também “global” da riqueza e da pobreza, com o que estariam abolidas as distinções entre nações imperialista e semicoloniais próprias do im-perialismo clássico;

iv) a hegemonia do “trabalho imaterial” e a perda de peso dos assalariados, com o qual a classe operária ou não existe mais ou não tem a possibilidade de jogar um papel hegemônico no conjunto dos setores oprimidos pelo capital;

v) ligado ao anterior, o surgimento de um novo sujeito resistente, a “multidão”, que seria expressão de um força produtiva dominado pelo “general intellect”; um sujeito que já não se definiria pela obrigação de vender a força de trabalho ao capital e do lugar comum que se ocupa no processo da produção, o que deixaria sem sus-tentação toda política classista tanto no terreno “nacional” como no “global”.

Esta visão extrapolada e carente de qualquer limite que Negri apresenta de fenômenos que, na realidade, atuam somente como tendência, e que fazem dizer que o comunismo está “ao alcance da mão” e que para chegar a ele não faz falta nenhuma “transição”, constituem um enorme embelezamento das possibilidades do capital para superar suas contradições. Daí que lendo Negri se tenha freqüentemente a im-pressão de um capitalismo tão modificado... que deixou de ser tal. Esta superestimação da maturidade das “condições objetivas” operam por sua vez como justificação de uma prática “subjetiva” que consistente em aceitar a “miséria do possível”, uma mera pressão sobre os “poderes fáticos” existentes que caracteriza as correntes autono-mistas apesar de sua retórica.16

A ausência de “equilíbrio capitalista”

Contrastemos estas posições, tratando de transformar a “álgebra” de Trotsky em formulações aritméticas que nos permitam indicar as características do “marco estratégico” que foi sendo conformado nos últimos anos. Em trabalhos anteriores indicamos que o conceito de Trotsky de “equilíbrio capitalista” analisa a dinâmica do sistema combinando a situação da economia, dos conflitos e antagonismos inter-estatais e a luta de classes17. Desta forma, evitávamos cair em análises mecanicistas de distintos tipos18 para definir se os tempos se tornavam mais convulsivos ou não, buscando por sua vez em forma “leninista” tratar de captar os “elos débeis” para o desenvolvimento do processo revolucionário. Aplicando esse método na atualidade, o certo é que desde que o relativo equilíbrio19 capitalista nos centros imperialistas foi rompido pela ação da luta de classes no final dos anos 1960 e na economia com a crise de 1973-75, a economia mundial não alcançou mais do que estabilizações parciais e precárias. Para além do que sustentam os defensores das teses de que o capitalismo é capaz de superar suas próprias contradições, é um fato que desde princípios dos anos 1970 o capitalismo mundial vive uma “crise de acumulação” que não conseguiu superar. Apesar da brutal ofensiva descarregada sobre os trabalhadores, dos avanços científicos e tecnológicos e da conquista de novos mercados e novas áreas sob seu domínio (como o mercado chinês), o crescimento médio da economia é muito inferior aos anos do “boom”. Comparando o crescimento médio nas quatro principais econo-mias capitalistas em duas séries (1960-73 e 1980-94) podemos ver a diminuição no ritmo do crescimento capitalista claramente no Quadro 120:

Quadro 1

PAÍS PROMEDIO PIB 1960-73 PROMEDIO PIB 1980-94
EE.UU. 3,96 2,32
Japón 9,68 3,95
Alemania 4,38 1,94
Francia 5,41 1,89

Em seu trabalho The boom and the bubble, Robert Brenner coloca uma visão similar, dando conta do dinamismo econômico declinante que apresenta a economia mundial:

Quadro 2
Dinamismo econômico declinante
(variação percentual da média anual)

PBN 1960-69 1969-79 1979-90 1990-95 1995-2000 1990-2000
Estados Unidos 4,6 3,3 2,9 2,4 4,1 3,2
Japón 10,2 5,2 4,6 1,7 0,8 1,3
Alemania 4,4 3,6 2,2 2 1,7 1,9
Unión Europea 5,3 3,7 2,4 1,6 2,5 2
G-7 5,1 3,6 3 2,5 1,9 3,1

PNB per capita

PBN 1960-69 1969-79 1979-90 1990-95 1995-2000 1990-2000
Estados Unidos 3,3 2,5 1,9 1,3 3,4 2,4
Japón 9 3,4 4 1,1 1,1 1,1
Alemania 3,5 2,8 1,9 7 1,6 4,3
G-7 3,8* 2,1** 1,9 1,2 2,5 1,8

* 1960-73
** 1973-79

Fonte: Robert Brenner, The boom and bubble, Verso, 2002.

Podemos ver aqui ainda que na segunda parte dos 1990 a economia norte-americana em particular tenha melhorado seu rendimento - alimentando os delírios da “nova economia” -, a média do crescimento de seu PNB na década não superou os índicos dos considerados já magros rendimentos dos 1970. Isso sem considerar os índices de Japão, Alemanha ou o conjunto da União Européia.

Segundo nosso ponto de vista, as dificuldades para que o capitalismo mundial alcance uma nova situação de “equilíbrio” mais ou menos duradouro se sustentam nas tendências ã decadência da hegemonia norte-americana, cuja liderança do “oci-dente” foi indisputada nos anos do “boom” (quando gerava 40% do produto bruto mundial, contra 25% na atualidade) enquanto hoje se vê crescentemente questionado por seus rivais europeus e asiáticos, para alem da recuperação de posições e da fan-tasia de “domínio ilimitado” apresentada na década de 1990.

Daí a superficialidade das afirmações de que existe um único capital “global” que haveria transformado em algo do passado as disputas interimperialistas. Na rea-lidade esta não é uma discussão nova para o marxismo. Como indicamos, em seu momento Kautsky e outros colocaram que a tendência ia no sentido da conformação de um único trust mundial, dando lugar a um “ultraimperialismo”. Lênin combateu essa posição, (e com ele Trotsky e Rosa Luxemburgo, ainda que esta última partindo de outra explicação do funcionamento do capitalismo e da causa de sua crise) não porque negasse a dinâmica do capital no sentido da concentração e da centralização do poder monopólico, mas porque não acreditava que esta tendência pudesse impor-se, por um lado, sobre a concorrência implacável pelos mercados dos distintos mo-nopólios, para o quê estes necessitavam do auxílio dos distintos Estados nacionais, e por outro, sobre a resistência do proletariado. Crer que o monopólio possa levar ã superação da concorrência, ou que porque o capital se move em uma escala distinta ã do Estado nacional pode prescindir do mesmo, é simplesmente acreditar que o ca-pitalismo conseguiu “levar suas tendências até o final”.

Pelo contrário, desde meados dos anos 1970, temos uma economia mundial dividida em três grandes blocos imperialistas. A tendência ao surgimento de blocos regionais é uma política das nações dominantes para competir em melhores condições com seus rivais. David Harvey, cujo trabalho mais recente é O novo imperialismo, sustenta que:

a tentativa por parte dos Estados Unidos de controlar o petróleo do Oriente Médio ... tornou-se ainda mais importante agora, e não tanto para proteger as fontes de petróleo norte-americanas, que são muito diversas, mas para controlar a economia global e a competição por parte de outros blocos eco-nômicos: em primeiro lugar o Japão e a China, que não tem fontes de petróleo próprias e dependem do petróleo do Oriente Médio, e até certo ponto também Europa. (...) Teríamos então três blocos de poder: o Leste asiático, os Estados Unidos e a União Européia, com uma importante competição entre eles. Isto nos levaria a um imperialismo competitivo como o analisado por Lênin no início do século XX, com a diferença de que agora seria entre blocos de po-der, em lugar de ser entre países.21

É que, ainda que as forças produtivas tenham se internacionalizado o capital não se “globalizou” homogeneamente, mas desenvolveu-se de forma desigual e combinada. A grande maioria dos “investimentos estrangeiros diretos” estão con-centrados nas nações do G-7 e em um punhado de países, como China e outros do leste e sudeste asiático. Na América Latina, México, Brasil e Argentina foram parte desse “clube” nos anos 1990 até que a crise provocou uma mudança no sentido da flecha. A tendência ã constituição de espaços econômicos “globais” se deu con-juntamente com o surgimento tanto de novos Estados como diferentes tipos de blocos regionais intermediários (como, guardadas as devidas diferenças, a União Européia, o NAFTA, a Apec ou o Mercosul) por meio dos quais os poderes impe-rialistas buscam assegurar um acesso privilegiado aos distintos mercados. Vemos atuar uma dialética na qual o mundo, ã medida que se “mundializa”, se parte e se divide. Como indicou Bensaïd:

Longe de criar um espaço político homogêneo, a “mundialização” imperial acres-centa as desigualdades e reforça as relações de dominação, levando ao um tipo de “balcanização do planeta”. No mesmo momento onde os Estados nacionais são caracterizados como algo do passado, o Comitê Olímpico Internacional conta com mais e mais membros e bandeiras. Somente a Europa viu aparecer em dez anos uma dúzia de novos países e mais de 15.000 quilômetros de novas fronteiras. (...) Porém, quanto mais os Estados se multiplicam, mais sua soberania reconhecida torna-se formal. Por trás destas “soberanias de fachada” se instalam diversos Estados fantoches, cortesãos ou mendicantes, submetidos ás potências dominantes. (...) Esta dialética de dissolução por cima de velhos impérios destruídos por seu próprio poder e do despertar por baixo de aspirações nacionais frustradas, de formação de novos aglomerados regionais e de fragmentação de territórios nacionais, está longe de se esgotada.22

Podemos então entender que a política imperialista agressiva desenvolvida pelo governo de Bush, e, sobretudo de sua ala “neoconservadora” respondeu não ã “loucura” dos membros de sua administração ou meramente ã busca de negócios privados, mas sim vai no sentido de utilizar o terreno em que os Estados Unidos domina sem disputa, a força militar, como fator de disciplinamento político para recuperar parte da hegemonia perdida. É, se se quiser, uma política voluntarista e facilista, mas que seria continuada no essencial por um eventual governo de Kerry, e em maior medida do que acreditam os que apoiaram o candidato democrata como um “mal menor” frente a atual administração republicana.

A opressão imperialista

A ausência da visão de que o capitalismo desenvolve-se de forma “desigual e combinada”, levou por sua vez a um dos despropósitos centrais das teses globa-lizadoras, aquele na qual se considera ultrapassada a opressão que as nações im-perialistas exercem sobre as nações oprimidas. Sob o neoliberalismo temos vivido uma redistribuição desigual do poder estatal. Aumentou o poder das potências impe-rialistas em detrimento da força das nações subjugadas, a partir do controle que as primeiras exercem sobre os cinco monopólios dos quais na atualidade depende, segundo Samir Amin, o domínio mundial: sobre as novas tecnologias, sobre o controle dos fluxos financeiros, sobre o acesso aos recursos naturais do planeta, sobre os meios de comunicação, sobre as armas de destruição em massa. É certo que a tendência não é homogênea entre os países que não pertencem ao seleto “clube” do G-7: em meio ao incremento das disputas interimperialistas, estamos presenciando com o co-meço de século o fortalecimento de uma série de potências de peso regional, como Brasil, África do Sul ou Índia (e, com características peculiares, China). Porém, para além das intenções de ressurreição senil das burguesias semicoloniais, a dominação imperialista mantém-se incólume: entre 1982 e 1998 os países da periferia capitalista pagaram em serviços da dívida quatro vezes mais dos que deviam, o que levou ã mul-tiplicação de sua dívida por quatro nos últimos vinte anos. Por anos se desembolsam desde o chamado “terceiro mundo” ao redor de 200 bilhões de dólares. Como se pode evitar ver que esta monumental espoliação dá bases renovadas à luta anti-imperialista considerando, pelo contrario, que a “globalização” fez desaparecer a opressão entre as nações? Isto não nega (quem poderia fazê-lo?) que no interior dos próprios países imperialistas existam milhões de pobres e desempregados (em grande parte imigrantes ilegais, que subsistem de forma completamente precária nas me-trópoles européias e norte-americanas) e que tenha aumentado neles a polarização social. Mas tomar esses fatos para apagar as diferenças entre nações opressoras e oprimidas não é mais que uma posição falsamente internacionalista, onde perderia toda hierarquia, por exemplo, a luta pelo fim do flagelo que significam as dívidas externas dos países oprimidos, que chegou a tal ponto, que até a Igreja Católica tomou-a demagogicamente como bandeira para recuperar adeptos e mostrar uma faceta “social” que compense o extremo conservadorismo cultural do papado de João Paulo II. Falso internacionalismo, dizemos, porque ser internacionalista em um país imperialista é uma posição que parte de assumir a condição de opressora da própria nação e o relativo privilegio que têm os trabalhadores nesses países com relação aos dos países oprimidos (por acaso não demonstrou Lênin a existência de uma “aristocracia operária” que dava base para a política reformista da social-de-mocracia daqueles anos?).

Porém não é somente a dominação econômica, mas uma crescente política de intervencionismo militar o que caracteriza o imperialismo de nossos dias, questão que vai na contramão do que afirmam os teóricos globalizadores. Suas teses não permitem explicar as tendências ã volta de política imperialistas e colonialistas que praticam as potências dominantes, onde as respostas que recebem ã sua crescente expansão e apropriação de recursos (entre as quais consta o incremento de ações terroristas brutais, como os atentados de 11 de setembro de 2001) são justificadas pela suposta existência de Estados “vilões” ou Estados “fracassados”, que segundo suas relações com Washington são indicados alternativamente como promotores de algum “eixo do mal”. O certo é que o imperialismo é um fenômeno tão atual que, como Perry Anderson indicou recentemente em uma recente conferência dada em Havana, as tendências a sua exaltação se vêem ainda nos discursos públicos dos políticos e think tanks das potências dominantes:

Como se articula, então, essa nova prepotência norte-americana com as ino-vações ideológicas do neoliberalismo e do humanismo militar? Na forma - que era impensável há somente alguns atrás - de uma reabilitação plena e cândida do imperialismo, como um regime político de alto valor, modernizante e civilizador. Foi o conselheiro de Blair em assuntos de segurança nacional, Robert Cooper, uma espécie de mini-Kissinger da Downing Street, que iniciou esta trans-valoração contemporânea do imperialismo, dando como exemplo comovente a investida da OTAN contra Iugoslávia. Depois o neto de Lyndon Johnson, o jurista constitucional e estrategista nuclear Philip Bobbit (coordenador dos serviços de espionagem no Conselho Nacional de Segurança de Clinton) com seu enorme livro O Escudo de Aquiles, previu a teorização mais radical e ambiciosa da nova hegemonia norte-americana. Hoje, nos EUA, há uma enxurrada de artigos, ensaios e livros celebrando o Império Americano - tipicamente em-belezado por longas comparações com o Império Romano e seu papel civilizador.

Deve-se destacar que essa euforia neoimperialista não é um excesso efêmero da direita norte-americana; há tanto democratas como republicanos no rol de seus pró-ceres. Para cada Robert Kagan ou Max Boot por um lado, há um Philip Bobbitt ou Michael Ignatieff por outro. Seria um erro grave iludir-se de que somente com Reagan ou com os Bush que essas idéias tenham crescido; não, também Carter e Clinton, com seus Zbigniew Brzezinskis e Samuel Bergers ao lado, desempenharam um papel igualmente fundamental em seu desenvolvimento.

A crise do “movimento dos movimentos”

Porém as teses de Império sofreram um rápido desgaste não somente porque a mudança na política exterior norte-americana sob a presidência de Bush (e especialmente desde o 11 de setembro) colocou uma volta a uma política imperialista clássica, deixando sem sustentação o ao menos obrigando a reformular drasticamente suas principais afirmações23, mas também pelos limites mostrados pelo chamado “movimento dos movimentos”, que Negri identificou como encarnação visível da “multidão”. Ao contrário de suas ilusões, Gênova não foi um ponto de preparação para uma ofensiva maior, mas um ponto limite a partir do quais o “movimento alter-mundista”, como se denominou deste então, começou, ao menos nesta etapa, um pe-ríodo de declínio24. É certo, que depois ressurgiu como movimento antiguerra, mas apesar das impressionantes mobilizações não conseguiu evitar a ocupação do Iraque e a maioria de seus mentores passou a defender a “política do mal menor”, sendo ba-se do refortalecimento eleitoral da social-democracia na Espanha e na França, e im-pulsionando a campanha nos EUA. Por sua vez, o PT, impulsor do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, chegou ã presidência com Lula, mas para atuar, longe de qualquer mudança, como um “ortodoxo” aluno do FMI. O próprio Paolo Virno teve que reconhecer em parte a impotência do “movimento dos movimentos” para afetar a “acumulação capitalista”, em uma recente reportagem:

O movimento global, de Seattle em diante, se parece com uma pilha que funciona parcialmente: acumula sem pausas energia, mas não sabe como nem onde descarregá-la. Se está frente a uma assombrosa acumulação, a qual não tem correlato, pelo momento, em investimentos adequados. É como estar diante de um novo dispositivo tecnológico, potente e refinado, mas do qual se ignoram suas instruções de isso. A dimensão simbólico-midiática foi, ao mesmo tempo, um conjunto de ocasiões propícias e de limites. Por um lado, garantiu a acumulação de energia; por outro, impediu, ou adiou infinitamente, sua aplicação. Todo ativista é consciente disso: o movimento global não con-segue ainda incidir - entendo incidir a partir da imagem de um ácido corrosivo - sobre a atual acumulação capitalista. O movimento não colocou em jogo um conjunto de formas de luta capazes de converter em potência política subver-siva a condição do trabalho precário, intermitente, atípico (...) de onde nasce a dificuldade? Porque a taxa de lucro e, inclusive, o funcionamento dos poderes constituídos não foram afetados de forma significativa depois de três anos de desordem sob o céu? (...) Equivoca-se quem desconfia da carga ética do movimento, repreendendo-o por descuidar a luta de classes contra a explo-ração. Porém, equivoca-se também, por motivos especulares, quem se compraz desta carga ética considerando que ela deixa fora do jogo categorias como “exploração” e “luta de classes”. Em ambos casos se deixa escapar a questão decisiva: o nexo polêmico entra a instância da “boa vida” (encarnada em Gê-nova e Porto Alegre e a vida posta a trabalhar (eixo da empresa pós-fordista)”.25

Secundariamente, também os resultados mais imediatos do processo aberto na Argentina com as jornadas de 19 e 20 de dezembro de 2001 foram um golpe contra Império. O que é mais parecido com a multidão em ação que o acontecido nesse ca-loroso e movimentado verão em Buenos Aires, com a deliberação das assembléias populares nas praças da Capital e o caminho ao final encontrado de sua unidade que parecia mostrar a confluência do “piquete e das panelas”? Como não ver aí, com tudo o que de progressivo mostraram as “jornadas revolucionárias”, não obstante um exemplo emblemático dos limites que tem o culto ã “espontaneidade” dos auto-nomistas e o handicap que significou para a burguesia a ausência de setores signi-ficativos da classe operária da indústria e dos serviços articulando a ação de massas? Como não relacionar a negativa a pensar em termos de “classe” com o caminho de conciliação com o Estado seguido, sob o governo Kirchner, pela maior parte dos autonomistas desses dias?

A crise estratégica do “movimento dos movimentos” coloca-se em dois planos. Um tem a ver com a própria definição de que a época do imperialismo teria sido supe-rada pela do domínio das instituições “globais” e pela perda de peso e/ou desapa-recimento dos Estados nacionais, o que levaria ã perda de sentido toda estratégia vinculada ã tomada ou conquista do poder. O outro se relaciona com a concepção de como conseguir articular a diversas “subjetividade resistente”.

Sobre o primeiro aspecto, as próprias ações desenvolvidas pelo movimento contra a guerra imperialista no Iraque demonstraram como uma estratégia inter-nacionalista só pode se desenvolver em combinação com o enfrentamento, no terreno “nacional”, com os governos e os Estados. No marco da divisão das potências impe-rialistas dominantes, era impossível lutar seriamente contra a guerra sem atacar os governos nacionais, que eram os que decidiam sobre o envio ou não de seus exércitos. O movimento antiguerra teve como aspecto progressivo combinar a ação interna-cionalista comum (como as mobilizações de 15 de fevereiro e 15 de março de 2003) com a denuncia e a luta contra os governos “locais”. Mas não conseguiu superar as ilusões de que uma solução poderia vir da mão do “mal menor”, dos governos im-perialistas opostos ás formas que adquiria a intervenção liderada pelos Estados Unidos. Por isso, apesar da massividade alcançada, o movimento antiguerra esteve imbuído de ilusões pacifistas, com a enorme debilidade de atuar em forma de “mul-tidão”, e não com os métodos próprios da classe operária, como a greve geral, os únicos que poderiam frear o maquinário de guerra dos distintos governos e levar ã sua derrubada por obra da ação direta das massas. Outro exemplo disso vemos hoje na América Latina, onde a situação é, desde esse ponto de vista, mais avançada, com a transcendência que tem a legitimidade alcançada pelas mobilizações populares, que não somente derrotaram planos privatizadores, como derrotaram governos que surgiram produto do sufrágio universal, como vimos no Equador, no Peru, na Argentina e na Bolívia. É verdade que, em todos os casos, esses levantes não se transformaram em revoluções abertas e que a burguesia dos distintos países conseguiu estabelecer governos de alternância. Mas são acontecimentos que pareceriam impensáveis na década de 1990, quando a região era sinônimo do triunfo das políticas privatizadoras do “Consenso de Washington”. Dirão por acaso nossos globalizadores que as massas que na Argentina impuseram a fuga de seus governantes se equivocaram de objetivo?

Quanto ao segundo aspecto, teremos primeiro que esclarecer, aqui também, a visão vulgar que se apresenta sobre a concepção marxista acerca da centralidade política da classe operária. Os autonomistas seguem os pós-modernos em designar essa perspectiva como “reducionista”, como uma perspectiva que negaria a potencialidade de ação dos “novos movimentos sociais”. Porém essa crítica parte de um amálgama que consiste em transformar esta centralidade (que advém da própria caracterização da sociedade em que vivemos como “modo de produção capitalista”) em sinônimo de política “obreirista” ou “economicista”, deixando de lado que justamente um dos problemas centrais da teoria política marxista foi a articulação da aliança social revolucionária para enfrentar o poder dominante: nada além do problema de como a classe operária poderia tornar-se “hegemônica” em relação ao conjunto das classes e setores oprimidos e explorados, questão amplamente problematizada pelo marxismo russo e colocada pela III Internacional antes de sua stalinização. Para Trotsky, a centralidade da classe operária na aliança social revolucionária não foi nunca sinônimo de “obreirismo”. Pelo contrário, a possibilidade “herética” contida na “primeira lei da revolução permanente” de que a classe operária chegasse ao po-der em um país atrasado antes que em um avançado, dependia de sua capacidade de conquistar a hegemonia sobre o conjunto das massas oprimidas, a começar pelo camponeses, levantando as demandas que diziam respeito ao conjunto da “nação oprimida”. O mesmo Trotsky não limitou sua perspectiva a alcançar a “aliança operária e camponesa”, mas a estendeu à luta das nações oprimidas, defendendo, por exemplo, o direito da população negra dos Estados Unidos a ter seu próprio Estado, na região que quisessem, ou o direito da Ucrânia ã sua independência frente a opressão nacional “grã-russa” exercida pelo stalinismo; desenvolvendo nesse raciocínio o que Lênin havia formulado em sua polêmica sobre a “questão nacional” com Rosa Luxemburgo. E na própria União Soviética sua luta contra o stalinismo e a burocratização do Estado operário teve entre seus pontos centrais a crítica ã opressão da mulher e da juventude e a denuncia do sufocamento da produção artística e cultural provocado pelo despotismo burocrático, como sabe qualquer um que tenha lido o extraordinário trabalho que é A Revolução Traída, os trabalhos publicados em Problemas da vida cotidiana, ou os que compõem Literatura e revolução.

Quer dizer que as afirmações sobre que os “novos movimentos sociais” estabe-leceriam uma impugnação do marxismo devido a que há demandas que não se sub-sumem na reivindicação de classe é uma colocação que questiona somente posições “sindicalista” ou “obreirista” primitiva - ou seja, é buscar um inimigo fácil - e não aqueles que se apóiam no desenvolvido por Trotsky. Ressaltar hoje a “centralidade operária” não é o produto de nenhum “essencialismo” e sim da análise concreta do desenvolvimento histórico, que no modo de produção capitalista gerou uma classe cujo lugar nas relações de produção lhe conferem uma potencialidade revolucionária com a qual não conta nenhum outro grupo social. Não se trata tampouco de desco-nhecimento do peso que as reivindicações de gênero, ecológicas ou nacionais possuem na luta anticapitalista, mas de colocar que é uma “utopia reacionária” crer que estas podem resolver-se progressivamente sem terminar com a exploração capitalista. Ou por acaso o desprezo ecológico e as dificuldades para impor ã utilização dos recursos naturais os critérios “miseráveis” da lei do valor não são uma das ma-nifestações mais cruéis da irracionalidade capitalista? Por sua vez, a experiência dos últimos anos mostrou que, quando esses movimentos atuam por fora de uma pers-pectiva de aliança com a classe trabalhadora na luta anticapitalista, suas demandas podem ser absorvidas pelo capital para dar-lhe legitimidade, um capital que utiliza a política da “diferença” para reinar mais homogeneamente no terreno da produção... e conseguir que “não se fale disso” porque seria “mero es-sencialismo”. Assim como a economia capitalista mundial não é um mero agregado de partes nacionais, tampouco um projeto de emancipação social pode surgir do mero agregado de demandas particulares. Se os diferentes problemas postos sobre a mesa pelosos “novos movimentos sociais” não encontrarem um articulador num projeto de transformação global, serão a sua maneira apropriados pelo capital: quer dizer, transformados em fonte de inspiração para novos negócios capitalistas. Que outra força há, com o potencial social da classe trabalhadora, para articular o conjunto das classes subalternas nesse projeto de transformação social global para o qual não há melhor nome do que o de comunismo?

As mudanças na composição da classe operária e nossa aposta estratégica

Mas não está a própria classe operária em processo de extinção? Sem dúvida, junto com a da desaparição dos Estados nacionais, as teses sobre o “fim do trabalho” e, portanto, o “fim da classe operária”, foi um dos mitos mais difundidos neste final de século.26 Em artigos anteriores da revista Estrategia Internacional, discutimos amplamente contra estas teses.27 Indicávamos que o que vivíamos não era o fim, mas uma reconfiguração da situação da classe operária, caracterizada pelo aumento da precarização, feminização, extensão geográfica e “dualização” na situação dos assa-lariados. Dizíamos também que a suposta “hegemonia do trabalho imaterial”, na qual Negri baseia sua idéia de multidão, é uma construção baseada no amálgama de pro-cessos muito diversos dos quais dizer que todos terminam compreendidos pela definição do general intellect e que expressam o domínio do “capitalismo cognitivo” é forçar tanto a realidade como os conceitos.28

Na realidade o que fazem as teses do “fim do trabalho” é ocultar que o crescimento da precarização do emprego não significa que o capital tenha prescindido do trabalho assalariado, mas que combinou a aplicação de políticas “flexibilizadoras” que avançam sobre as conquistas alcançadas pelos trabalhadores no século XX, com a “inte-lectualização” de uma fração da força de trabalho. Daí que muitos dos que apóiam estas teses tendam a amalgamar o fato que os novos postos de trabalho que se criam são “precários” e “flexíveis” (questão verdadeira) com a afirmação de que “não há mais trabalho” (questão falsa).29

Por sua vez, essa tendência ã precarização se vê acompanhada por altos índices de desemprego em nível mundial, ainda que com uma evolução desigual segundo os países e regiões que consideremos. Um recente informe da Organização Internacional do Trabalho, “Tendências mundiais do emprego”, 2004, dá conta da magnitude do fenômeno:

Em 2003 não melhorou o emprego no mundo, apesar do retorno ao crescimento econômico, depois de dois anos de declive (quadro 1). O desemprego total progrediu ligeiramente, apesar dos 3,2% de crescimento PNB no mundo e de um modesto aumento do comércio depois de um ano de 2002 fraco (3% em 2003, em comparação a 2,5% em 2002, WTO, 2003).

Uma estimativa da OIT, segundo a qual em 2003 havia 185,9 milhões de de-sempregados em busca de trabalho, põe de manifesto um ligeiro incremento, em comparação com a estimação revisada de 185,4 milhões de desempregados (quadro 1 e “Tendências mundiais do emprego”, 2003), e é o nível mais alto conhecido até agora. O aumento maior correspondeu aos jovens, e a taxa de desemprego juvenil no mundo chegou a ser de 14,4%, ou seja, duas vezes mais que o 6,2% da taxa mundial de desemprego. Ainda que o número de mulheres desempregadas no mundo tenha diminuído ligeiramente entre 2002 e 2003, as mulheres seguem entre as categorias mais afetadas pelo desemprego.

Paralelamente ao agravamento da situação do emprego no mundo, cresceu a economia informal nas regiões em desenvolvimento e de pouco aumento do PNB. Os trabalhadores da economia informal correm perigo de converter-se facilmente e trabalhadores pobres com um salário insuficiente para cobrir as necessidades próprias e familiares (1 dólar ou menos por dia), sobretudo nas economias onde não há um amplo sistema de seguro desemprego ou outras formas de proteção social. A OIT es-tima que, ao final de 2003, o número de trabalhadores pobres vivendo com um dólar ou menos por dia era de aproximadamente 550 milhões, isto é, o mesmo que em 2002. Com a persistência desse imobilismo, será impossível alcançar o Objetivo de De-senvolvimento das Nações Unidas para o Milênio que consiste em reduzir pela me-tade a pobreza no mundo de hoje até 2015.

Entretanto, é falso concluir, a partir da existência do desemprego de massas que estejamos frente ã extinção do trabalho assalariado, trata-se sim de que o alto desem-prego ocorre no marco de um crescimento numérico da população assalariada mun-dialmente. Se compararmos a quantidade da população empregada em 1980-82 com a existente na média dos anos 2000-02, os dados são conclusivos no sentido de de-monstrar a falsidade da desaparição do emprego.30 Consideremos uma série de vinte e oito países, quatorze dos quais são colocados nas estatísticas como “altamente industrializados” e quatorze como “países em desenvolvimento”:

Quadro 3

PAÍS OCUPADOS 1980-82 OCUPADOS 2000-02 DIFERENCIA DIFERENCIA en %
Holanda  5.017.000  7.879.000  2.862.000 57,05
Irlanda  1.137.000  1.706.000  569.000 50,04
Australia  6.351.000  9.161.000  2.810.000 44,25
EE.UU. 99.742.000 136.770.000 37.028.000 37,12
España 11.536.000  15.770.000  4.234.000 36,7
Canadá 11.071.000  15.133.000  4.062.000 36,39
Portugal  3.929.000  5.046.000  1.117.000 28,43
G. Bretaña 24.200.000  27.989.000  3.789.000 15,66
Japón 55.850.000  63.960.000  8.110.000 14,52
Francia 21.387.000  24.174.000  2.787.000 13,03
Dinamarca  2.404.000  2.692.000  288.000 11,98
Italia 20.324.000  21.262.000  938.000  4,62
Finlandia  2.343.000  2.349.000  6.000  0,26
Suecia  4.225.000  4.214.000  -11.000  -0,26
Venezuela  4.788.000  9.308.000  4.520.000  94,4
Malasia  5.035.000 9.459.000 4.424.000 87,9
México 21.393.000 38.620.000 17.227.000 80,5
Egipto  9.953.000 17.380.000 7.427.000 74,6
Chile  3.157.000 5.464.000 2.307.000 73,1
China 437.937.000 729.500.000 291.563.000 66,6
Indonesia 54.678.000 90.764.000 36.086.000 66
Filipinas 17.859.000 28.930.000 11.071.000 62
Brasil 46.696.000 75.458.000 28.762.000 61,6
Tailandia 21.670.000 33.243.000 11.573.000 53,4
Sud Corea 14.028.000 21.433.000 7.405.000 52,8
Pakistán 25.096.000 36.847.000 11.751.000 46,8
Taiwán 6.677.000 9.437.000 2.760.000 41,3
Argentina 10.285.000 12.738.000 2.453.000 23,9

Inclusive se medimos a relação entre o aumento dos postos de trabalho e o crescimento da população, também vemos um crescimento proporcional do emprego na maioria dos países. Os dados das fontes mencionadas mostram que, de quatorze países apontados como “altamente industrializados”, somente dois (Suécia e Fin-là¢ndia) mostram porcentagens negativas.31 O mesmo sucede entre os “países em desenvolvimento” considerados na mostra: somente dois (Argentina e Paquistão) entre quatorze32 apresentam cifras negativas. Mesmo levando em conta que essas cifras não falam da “qualidade” destes trabalhos - que são em sua maioria precários - e indicam somente uma realidade parcial - já que há países onde a força de trabalho empregada diminuiu, mostrando tendências diferentes ã dos países considerados na amostra - o certo é que se o fim da relação salarial fosse uma tendência estrutural do capitalismo contemporâneo deveria verificar-se nos países dominantes da economia mundial, questão que não ocorre, como demonstramos.

Chris Harman, por sua vez, calculou o tamanho da classe trabalhadora empregada no mundo em torno de 700 milhões de pessoas, com aproximadamente um terço des-tes na indústria e o resto nos serviços, indicando inclusive que o tamanho total da classe operária é consideravelmente maior que esse número. A classe também inclui os que dependem da renda que provém do trabalho assalariado dos parentes ou de poupanças e pensões que advém do trabalho assalariado passado - quer dizer, esposas não empregadas, crianças e aposentados. Se agregarmos essas categorias, o número total de trabalhadores em nível mundial chegar a estar entre 1,5 e 2 bilhões.Qualquer um que acredite que dissemos “adeus” a esta classe não está vivendo no mundo real.33

Basta recordar que o proletariado russo era composto por somente dez milhões de pessoas em relação a uma população total de 150 milhões e comparar isto com os números recém mencionados, para que os falatórios de que a “classe operária já não tem o peso social dos tempos de Marx” venham abaixo.

Demonstrar que a desaparição do trabalho assalariado não é um fenômeno estrutural do capitalismo contemporâneo não é, entretanto, mais que um primeiro passo no sentido de revelar a atualidade que tem a análise marxista que determina a centralidade da classe operária para a luta anticapitalista. O reconhecimento de sua existência como “classe em si” simplesmente indica que o potencial de sua força so-cial para atacar o poder capitalista não somente segue sendo insuperável, mas que se ampliou enormemente.

Porém a monumental força social de que dispõe a classe trabalhadora hoje não consegue expressar-se em toda sua magnitude, entretanto, quando os trabalhadores não se reconhecem como classe e não atuam como “classe para si”, questão que não é um processo automático nem mecânico, mas que está mediado pelas experiências realizadas pelos trabalhadores em sua luta contra a exploração capitalista, tanto no terreno econômico como no político.

Em geral, aqueles que sustentam as teses sobre o “fim do trabalho” contrapõe-nas a uma visão vulgar da análise marxista da classe operária, como se esta fosse considerada como um todo homogêneo e indiferenciado, cuja unidade política seria expressão mecânica de sua situação comum no processo produtivo. Não era esta, no entanto, a forma como colocavam a questão os grandes clássicos marxistas. Vejamos o que dizia Trotsky em um ilustrativo texto publicado em meados dos anos 1920, com o título “Não somente de política vive o homem”:

O proletariado encarna uma unidade social poderosa que, no período de luta revolucionária aguda, desdobra-se de modo pleno para conseguir os objetivos da classe em sua totalidade. Mas no interior dessa unidade há uma diversidade extraordinária, diria inclusive que uma disparidade nada desprezível. Entre o pastor ignorante e analfabeto e o mecânico especializado há um grande nú-mero de níveis de culturas e qualificações e de adaptação ã vida diária. Cada camada, cada categoria, cada grupo está composto em última instância de se-res vivos de idade e temperamentos distintos, cada um dos quais possui um passado diferente. Se tal diversidade não existisse, o trabalho do Partido Co-munista para a unificação e educação do proletariado seria muito singelo. Entretanto, que difícil é essa tarefa, como vemos na Europa Ocidental! Poderia se dizer que quanto mais rica é a história de um país, e, portanto, a história de sua classe operária, quanto mais educação, tradição e capacidade adquire; mais antigos grupos contém e mais difícil é constitui-la em unidade revo-lucionária. Nosso proletariado é muito pobre, tanto em história como em tra-dição. Isto foi o que tornou mais fácil sua preparação revolucionária para o le-vante de Outubro, não há dúvida alguma a respeito; e é também o que difi-cultou mais o seu trabalho de edificação depois de Outubro. Salvo a camada superior, nossos operários carecem indistintamente das capacidades e dos conhecimentos culturais mais elementares (para a limpeza, a faculdade de ler e escrever, a pontualidade etc.). Ao longo de um grande período, o operário europeu adquiria essas faculdades no marco da ordem burguesa: por isso, através de suas camadas superiores, se encontra estreitamente ligado ao re-gime burguês, ã sua democracia, ã imprensa capitalista e demais vantagens. Nossa atrasada burguesia, pelo contrário, não tinha nada para oferecer nesse sentido, e o proletariado pôde romper mais facilmente com o regime burguês e derrubá-lo. Pelo mesmo motivo, a maior parte de nosso proletariado se vê obrigada a alcançar e reunir as capacidades culturais elementares somente hoje, quer dizer, sobre a base do Estado operário já socialista. A história nada nos dá gratuitamente: o desconto que nos outorga em um campo - no da política - nos cobra em outro - o da cultura. Da mesma forma que foi fácil - obviamente, relativamente fácil - o levante revolucionário ao proletariado russo, resulta difícil a edificação socialista”.

Recorrer a essa dialética que aponta Trotsky nos ajuda a compreender algumas das contradições que apresentam as transformações ocorridas nos anos recentes na situação da classe trabalhadora, onde se entrecruzam tendências ã homogeneidade e ã fragmentação. Onde a ampliação do peso social dos assalariados vem acompanhada de um crescimento em seu seio dos valores e ilusões reformistas, próprios dos setores da pequena burguesia que se proletarizaram em condições de ofensiva capitalista. Onde a classe trabalhadora em nível mundial tende a ser mais culta e informada poli-ticamente, porém, por suas diversas experiências, história e cultura, apresenta pro-blemas para sua unidade revolucionária que Trotsky indicava então como próprios “do Ocidente”34, quer dizer, das sociedades capitalistas mais avançadas, e por sua vez isso se combina com a pauperização e degradação nas condições de vida de amplos setores. Onde frações do proletariado antes preponderantes ocupam um lu-gar marginal e outras antes inexistentes dão hoje mostras de nova combatividade. Tampouco hoje a história nos dará “nada gratuitamente”.

Desde essa mesma lógica podemos tentar dar conta também das mudanças operadas no que temos chamado como a “subjetividade” do proletariado. Durante o “mundo de Yalta”, esta apresentou o paradoxo de ser muito ampla e estendida, mas contida por monumentais burocracias reformistas que foram progressivamente limando as melhores tradições revolucionárias da classe operária. Se os trabalhadores obtiveram, na saída da Segunda Guerra Mundial, enormes conquistas que iam desde a expropriação dos capitalistas em Estados que abarcavam um terço do globo, até enormes sindicatos e uma melhora em suas condições de vida; o fizeram ao preço de dar novo crédito ás direções stalinistas e/ou social-democratas. Os processos revo-lucionários da década de 1970 colocaram a questão da hegemonia do reformismo, com a radicalização de amplas camadas da vanguarda operária e juvenil. Mas estes processos foram derrotados ou contidos, graças ao auxílio que prestaram aos regimes burgueses os PS e os PC (e, no mundo semicolonial, as direções nacionalistas bur-guesas e pequeno-burguesas). Nos inícios da década seguinte, o imperialismo pôde recompor forças e lançar sua contra-ofensiva contra uma classe operária que retro-cedeu, frente ao verdadeiro vazio gerado pela cumplicidade e/ou capitulação das direções reformistas frente ã ofensiva neoliberal, ao qual as correntes que se reivin-dicavam do marxismo revolucionário não foram alternativa35. Isto levou não somente ã perda de conquistas materiais, mas ao predomínio da idéia de que toda intenção de construir uma alternativa ao capitalismo inevitavelmente terminaria em derrota.

Por isso a implosão da burocracia stalinista - e o debilitamento e/ou super-estruturalização mais geral das burocracias sindicais - não se expressou mecani-camente em uma recomposição revolucionária pela esquerda, mas sim deu lugar a um processo de recuperação muito lento e tortuoso.

Com o novo século, os tempos parecem estar mudando. Ainda que o movimento “altermundista”, pela estratégia dominante em seu seio e por sua composição social, tenha sido impotente para derrotar a política imperialista, desempenhou sim um papel muito importante, de Seattle em diante, em deslegitimar a ordem existente e preparar uma volta ã cena da classe trabalhadora. Depois das derrotas e do retrocesso pro-vocados pelo neoliberalismo, tivemos recentemente - mesmo que ainda pequenas - manifestações práticas de que os trabalhadores estão recuperando algumas de suas melhores tradições de classe, após um primeiro despertar em meados da década de 1990, quando a grande greve geral de 25 dias dos trabalhadores dos serviços públicos na França em novembro/dezembro de 1995, não só introduziu a experiência do que Negri chamou “greve metropolitana”, mas foi a base de um giro ideológico ã esquerda de setores da intelectualidade.

No período mais imediato, vimos o renovado papel desempenhado pelos mineiros e pela Central Obrera Boliviana nas mobilizações e ações que terminaram com o governo de Sánchez de Losada em outubro de 2003, com um protagonismo que não tinham desde a derrota de 1985. Estas ações continuaram o exemplo internacional que significou a ocupação de fábricas postas a produzir por parte dos operários na Argentina, com Zanon e Brukman como emblemas (com impacto e transcendência internacional, como expressa o filme La Toma de Avi Lewis e Naomí Klein), e são parte de uma séria maior de greves exemplares protagonizadas por setores do pro-letariado europeu, como a dos postal workers da Grã Bretanha ou os trabalhadores do transporte na Itália, que recuperaram o método da greve “selvagem”, onde as bases superaram os obstáculos impostos pelas direções sindicais para sair deci-didamente à luta e alcançaram triunfos de grande repercussão. E, ainda que nesse caso tenham sido derrotados, vale lembrar o que foi feito pelos os trabalhadores das empresas públicas de energia EDF e GDF na França, realizaram as chamadas “ações Robin Wood”36, cortando o serviço elétrico nos bairros ricos e nos símbolos do po-der capitalista e religando a luz à quelas famílias pobre de quem a empresa havia cortado a luz por falta de pagamento. São todavia fatos minoritários mas que têm um enorme simbolismo para mostrar o que pode fazer a classe operária quando, ao menos em parte, transforma sua “potência” em “ato”.

Já colocamos que a classe trabalhadora, tanto pelo lugar que ocupa no modo de produção capitalista como por sua própria história revolucionária, é a única que conta com a potencialidade de dirigir o conjunto das massas oprimidas contra o poder capitalista dominante. Nenhum grupo ou movimento social conquistou sequer uma pequena parte do que a classe operária foi capaz de realizar em seus mais de 150 anos de história. Se conseguir recuperar confiança em suas próprias forças, inclusive seu poder social é superior à quele com o que contou no século passado, nas primeiras tentativas de levar ã prática o que em Marx era um projeto estratégico.

Mas para colocar-se novamente como “classe hegemônica”, a classe traba-lhadora mundial necessita um novo programa e uma nova ideologia. Isto não surgirá a partir de deixar de lado, em bloco o acontecido em mais de 150 anos de história e começar do zero, como pretendem Negri e outros. Não somente seguem havendo conquistas a, defender mas também há uma monumental experiência revolucionária acumulada que somente um tolo pode pretender desfazer-se. Eis aqui de onde surge a atualidade da luta pela reconstrução da IV Internacional.

O impossível retorno a Keynes e Roosevelt

Confrontando com as falsas afirmações dos autores “globalizantes” desen-volvemos, apoiando-nos em Trotsky, aspectos centrais do novo marco estratégico que foi se conformando no último período. Mas entre as idéias predominantes não estão somente as que colocam que a volta atrás na intervenção estatal na economia é um “dado irreversível”, mas também aquelas que se preocupam com as conseqüências para a estabilidade do regime dominante que tem a crise do “compromisso keynesiano” que provocou o neoliberalismo. Richard Rorty, por exemplo, indicou que:

as democracias ocidentais criaram sistemas de previdência social, com o objetivo de limitar as conseqüências do desenvolvimento econômico. O problema atual consiste no fato de que, em nível global, falta o equivalente de um governo nacional que se preocupe com o bem-estar da humanidade. Seria melhor se a globalização da economia tivesse sido levado a cabo ime-diatamente depois da criação de uma federação mundial com capacidade para criar um Welfare State global, quer dizer, um governo supra-nacional que, de algum modo, pudesse garantir um certo nível de justiça entre as na-ções e, no interior de cada uma delas, entre ricos e pobres (...) se a sociedade de capitais continua considerando o planeta como um puro mercado de tra-balho, cedo ou tarde a classe trabalhadora das velhas democracias se en-contrará com salários tão baixos que necessariamente derrubarão de maneira dramática seu atual nível de vida. Portanto, no caso de que não se leve a ca-bo uma política distinta, se corre o risco de provocar uma revolução social que poderia colocar em perigo as velhas democracias.37

Mas aqueles que assim pensam não compreendem melhor da dinâmica do capitalismo do que os autores que antes questionamos. Por um lado “esquecem” o detalhe que o Welfare State foi um privilégio do qual as nações mais poderosas do planeta puderam gozar a partir da dominação imperialista exercida sobre o mundo semicolonial.38 Todo o chamado de Rorty a combater o neoliberalismo com uma volta ao velho reformismo se apóia em ignorar o caráter imperialista das “democracias ocidentais”. Daí que combine suas aspirações a um “Estado de bem-estar” mundial com o reclamo ã “esquerda cultural” norte-americana para deixar de lado os debates da “agenda global” e disputar a direita populista no sentido da “nação”:

A esquerda cultural parece convencida de que a nação-Estado é algo obsoleto e que, portanto, não há sentido em tentar reanimar a política nacional. O problema desta idéia é que em um futuro previsível, o governo de nossa nação será a única ins-tância capaz de modificar realmente o índice de egoísmo e sadismo infligidos aos norte-americanos. (...) O hábito atual que tem a esquerda - o de adotar uma perspectiva afastada e olhar, para além da nacionalidade,no sentido da política global - é tão inútil como aquilo que substituiu (...) Quando refletimos sobre essas coisas, nos damos conta que uma das transformações essenciais que há que atravessar a esquer-da cultural e desfazer-se desse antinacionalismo semiconsciente que se conserva desde a indignação dos anos sessenta. É hora de que essa esquerda deixa de imaginar conceitos ainda mais abstratos e abusivos para nomear “o sistema” e que comece a tentar construir imagens inspiradoras de seu país. Somente fazendo isso começará a criar alianças com as pessoas que estão fora do mundo acadêmico, e especialmente com os sindicatos. Fora do mundo acadêmico, os norte-americanos seguem sentindo-se patrióticos. Ainda querem sentir-se parte de uma nação que possa tomar o controle de seu destino e converter-se em um lugar melhor.39.

Como pode se observar, o que Rorty propõe não vai além de exigir que a “esquerda cultural” pressione os democratas para que retomem algo do discurso redistribu-cionista com o qual Roosevelt ganhou apoio entre os trabalhadores para a política de expansão do imperialismo norte-americano. Mas, formulado nos termos de disputa pelos valores da nação, o apelo de Rorty só pode desempenhar um papel regressivo, não somente pela idealização das políticas que favoreceram o desenvolvimento im-perialista dos EUA, mas porque hoje são a base na qual se apóiam políticas de tipo protecionista que atacam os interesses dos países oprimidos e que se justificam em nome da defesa dos interesses dos trabalhadores, como ocorre com o caso dos subsídios agrícolas nos Estados Unidas e na União Européia, ou nas demandas contra o mantimento de relações comerciais com a China por parte de vários sindicatos norte-americanos. O fato é que nos países imperialistas, toda política nacionalista leva os trabalhadores a colocarem-se atrás dos interesses de seus monopólios “nacionais” contra outros “estrangeiros” ou simplesmente a servir de base para a competição entre grupos de capitalistas com interesses parcialmente divergentes. Sem questionar o poder dos capitalistas do próprio país que exercem “poder global”, sem atacar decisivamente seus interesses, cai-se inevitavelmente em uma política que enfrenta os trabalhadores dos países dominantes contra os dos países pobres. Somente desde uma perspectiva conseqüentemente internacionalista pode se evitar que os trabalhadores sejam presa da demagogia dos populistas de direita. O que im-plica não somente a oposição mais intransigente e o derrotismo frente a todas e a cada uma das incursões imperialistas do próprio Estado, como uma atitude de defesa do direito incondicional de cidadania para todo trabalhador imigrante. Toma assim completa atualidade o que colocava Marx aos trabalhadores britânicos sobre a necessidade de apoiar os independentistas irlandeses: “nenhuma classe que apóie a opressão de outro povo poderá ser realmente livre”.

Mas não é somente isso. A verdade é que a decadência do “Estado de bem-es-tar” não é um fenômeno circunstancial, mas expressão da impossibilidade, mesmo que nos Estados imperialistas, de manter o “compromisso keynesiano” ao qual, va-lendo-se de seus privilégios de nações dominantes, a burguesia recorreu no ocidente para fazer frente ao fortalecimento da URSS, ao mesmo tempo que facilitava um tipo de acumulação capitalista “extensivo” favorecido pelas necessidades de reconstrução econômica do pós-guerra. A sua maneira, o “Estado de bem-estar”, impulsionando a intervenção do Estado sobre a economia e os serviços gratuitos de saúde, educação e empresas de serviços públicos, implicou uma certa homenagem realizada pelo capi-talismo ao socialismo, no sentido do que Lênin dizia sobre os correios (e sobre mo-nopólio mais em geral), ainda que também aqui tenha se mostrado a incapacidade capitalista para levar suas tendências até o final. Em seus momentos “dourados” incluiu inclusive uma exaltação das virtudes da planificação estatal. No entanto, esses recursos foram postos em jogo para preservar o domínio dos grandes mo-nopólios capitalistas, não para confrontá-los. E, atingindo certo limite e modificada a relação de forças, mudou o sentido da seta e a exaltação das virtudes do “mercado” contra as “ineficientes burocracias estatais” passou a orientar o discurso dominante, provocando a crise das teorias que previram a “burocratização do mundo” produto das presumidas tendências ã racionalização inscritas na “dialética do esclarecimento” e que foram incapazes de rever que a dinâmica que tomaria a ofensiva capitalista seria a oposta, a de uma “remercantilização” generalizada das relações sociais.

A “crise fiscal” dos Estados que tanto se discutiu no final dos anos 1970 expres-sou que o relativo equilíbrio do pós-guerra não podia ser sustentado. Fracassada a intenção de romper “pela esquerda”, com o “ensaio geral” revolucionário dos anos 1970, veio a ofensiva “neoliberal”, com o objetivo de mitigar a tendência ã queda da taxa de lucro não somente ampliando a exploração dos trabalhadores das nações periféricas mas também avançando sobre as concessões que o capital foi obrigado a realizar para a classe trabalhadora dos países centrais. É nesse sentido que é mera ilusão a idéia de que os monopólios capitalistas possam estar dispostos a voltar atrás do que conquistaram nessas últimas décadas pacificamente. Não é um dado menor que um dos “segredos” que permitiu o capital norte-americano reposicionar-se melhor que seus competidores europeus e japoneses na década de 1990 tenha sido a maior domesticação de sua força de trabalho conquistada nos anos 1980, uma das mais “flexibilizadas” e que perdeu maior quantidade de conquistas. E se não avançou mais nessa direção se deve a que os EUA mantiveram em parte suas posições com base a que o domínio exercido pelo dólar no mercado financeiro permitiu seu privilégio de se endividar a níveis superiores aos “latino-americanos” mas sem as conseqüências que isso implica para as nações de nossa região.

A defesa das conquistas que os trabalhadores associam com o “Estado de bem-estar”, como o acesso gratuito a educação e a saúde pública, os sistemas previ-denciários ou os limites ao despotismo capitalista consagrados em distintas “leis” e “convênios” trabalhistas, estará condenada ã derrota se realizada na perspectiva de “renovar o compromisso keynesiano”. Trata-se, ao contrário, de desenvolver uma estratégia que permita levar ã conclusão que o único Estado realmente “benfeitor” para os trabalhadores será aquele no qual a burguesia seja expropriada e a classe trabalhadora exerça diretamente o poder, como transição para a sociedade sem classes. É, contra o que dizem os críticos do marxismo, uma perspectiva não somente desejável, mas muito mais realista do que a que propõem os globalizadores ou as viúvas de Lorde Keynes.

Mendigando um lugar na “nova ordem”

Uma versão latino-americana de um pensamento do tipo acima mencionado é o dos intelectuais desenvolvimentistas ou neodesenvolvimentistas, que historica-mente tiveram referência intelectual na Cepal. Depois que a aplicação das políticas do “consenso de Washington” levara a América Latina a uma nova década perdida, as idéias “neodesenvolvimentistas” voltaram a ganhar certa expressão. Tomemos como exemplo um de seus principais expoentes, o octogenário sociólogo e cientista político brasileiro Helio Jaguaribe, que foi um dos arquitetos da política “desenvolvimentista” de Juscelino Kubitschek entre 1956 e 1961. Jaguaribe vem insistindo que uma aliança estratégica entre Brasil e Argentina é a ponta de lança para que, primeiro no Mercosul e depois em toda a América do Sul se constitua como um dos pólos relativamente autônomos no sistema internacional de Estados. Segundo Jaguaribe, hoje nos encon-tramos em uma situação de “unimultipolaridade” norte-americana (conceito tomado do cientista político conservador Samuel Huntington), já que se por um lado o poder norte-americano é inigualável em aspectos chaves, por outro, diversas razões externas e internas o impedem de atuar como um império no sentido que fazia Roma na Anti-guidade ou ainda a Grã Bretanha no século XIX. Segundo sua apreciação o sistema mundial vive desde a queda da União Soviética um momento de transição no qual há duas tendências em conflito em relação a como poderá se desenvolver nas próximas décadas. Uma em direção a Pax Americana; outra, ã um sistema multipolar, com a União Européia, Japão, China, Rússia, Irã, Índia e, eventualmente, América do Sul, como aqueles que poderiam conformar juntos aos Estados Unidos um “diretório político” do mundo.

Jaguaribe indica que por trás do que chama a “terceira onda globalizadora do capitalismo” houve um claro aumento da desigualdade em nível mundial:

O brilhante economista chileno Osvaldo Sunkel observou que as globali-zações, inversamente ao que apregoa o neoliberalismo, acentuam enorme-mente as assimetrias. Índia e China, demonstra Sunkel, sofreram com a primeira globalização, e a relação entre Europa e Ásia, que era de 1 a 1, passou a ser de 2 a 1 a favor dos europeus. Depois, a Revolução Industrial agrediu as relações entre o mundo desenvolvido e o subdesenvolvido, elevando essa diferença para 10 a 1. Agora, se medirmos a renda per capta dos países ricos e pobres, essa brecha é de 60 a 1. Então é mentira que a globalização é boa para todos, já que para alguns é péssima.40

Assim,

hoje, com uma globalização severamente agravada pelo unilateralismo dos Estados Unidos, o mundo está se dividindo em quatro níveis diferentes: 1. Nível supremo. Supremacia absoluta (ou quase) dos EUA. 2. Nível de elevada autodeterminação. Nesse se encontram somente a União Européia e Japão. 3. Nível que eu chamaria de resistência. Nesse estão China, Índia e Rússia, que tem capacidade de limitar a interferência da globalização em seu próprio terri-tório. Ou seja, tem capacidade de autodeterminação interna e muito limitada auto-determinação externa. 4. Nível de dependência. O restante dos países.41

Os países do nível 4 se encontram na situação de não serem mais que espaços geográficos para a exploração por parte das grandes transnacionais. O Brasil estaria situado no meio entre o terceiro e quarto níveis. Justamente da capacidade de esta-belecer um acordo estratégico com Argentina depende sua possibilidade de “saltar” na escala mundial de países:

No atual processo de globalização e unilateralismo, nem Argentina nem Brasil estão em condições de resistir, isoladamente, a ser absorvidos pelo sistema im-perial norte-americano. Se for consolidada uma aliança estratégica - e não somente retórica - primeiro no nível do Mercosul e depois no nível da América do Sul para a formação de um poder econômico, tecnológico e cultural (não um poder militar) podemos elevar-nos do nível de dependência ao de resistência.42

Daí sua oposição ã ALCA (ainda que nos últimos tempos deixe mais aberto que seja conveniente incorporar-se ã mesma se puderem impor certas condições):

Para países coma a Argentina e Brasil, a ALCA representaria um catastrófico retro-cesso ã condição que esses países ostentavam até 1930, de produtores de matérias primas e artigos agropecuários não elaborados e importadores de bens e serviços com maior teor tecnológico. (...) A Argentina e o Brasil, no final do século XX, não possuem nenhuma alternativa histórica a não ser a de consolidar e expandir o Mercosul e tratar de instituir mediante acor-do com o Pacto Andino, um Sistema Sul-Americano de Cooperação Econô-mica e Política.43

Mas todos os seus chamados ã “integração latino-americana” não vão além de permitir ã burguesia brasileira mendigar um lugar dentro das nações dominantes em um futuro “diretório mundial”. Porém, ainda para esse objetivo menor, que prostitui a aspiração ã unidade econômica e política do subcontinente, as ilusões que deposita Jaguaribe nas burguesias locais e em seus representantes políticos não tem correlato com a realidade de suas ações. Estas já mostraram seu fracasso quando as condições foram muito mais favoráveis para elas, entre as décadas de 1930 e 1960 do século XX. Ali, a crise mundial e as rivalidades entre as potências dominantes favoreceram o desenvolvimento dos chamados “populismos latino-americanos”, nos quais setores das burguesia locais se apoiavam nas massas trabalhadoras e/ou camponesas para resistir ã pressão imperialista e negociar melhores condições para sua submissão. Porém todos os movimentos que vieram à luz vangloriando-se de antiimperialismo e que realizaram distintas concessões ás massas para ganhar seu apoio terminaram reciclando-se como privatizadores e impulsionadores entusiastas das políticas neoliberais, seja o peronismo na Argentina com Menem, o Movimento Nacionalista Revolucionário na Bolívia com Sánchez de Losada, o PRI mexicano com Salinas de Gortari e Zedillo ou a própria elite brasileira que sustentou o governo de Fernando Henrique Cardoso (que Jaguaribe acompanhou como ministro durante seu primeiro mandato), um dos mais “entreguistas” dos últimos tempos. O ciclo dos nacionalismos burgueses, longe da “soberania econômica”, deixou como resultado um domínio muito maior por parte do capital transnacional das economias da região (no caso do Brasil, o mesmo Jaguaribe indica que perto de 47% das principais 500 empresas são imperialistas) e o peso estrangulador da dívida externa, além do controle de múltiplos recursos estratégicos nas mãos imperialistas, como os casos emblemáticos do petróleo e das empresas de serviços públicos privatizadas na Argentina44. A idéia que se pode avançar em superar o atraso e a dependência sem atacar as posições conquistadas pelo capital imperialista e seus sócios locais nas últimas décadas não resiste ã menor análise, a de que pode afetar esse interesse “pacificamente”, quase sem encontrar re-sistência, é de tal ingenuidade que Jaguaribe parece não ter aprendido nada do sé-culo que acaba de terminar: suas propostas para superar a crise brasileira não vão além de propiciar uma baixa nas taxas de juros e emitir um bônus para financiar obras públicas forçando “a poupança interno” da elite dominante... Meras elaborações distracionistas, em um país que tem 53 milhões de pobres - 34% da população - dos quais 22 milhões são indigentes - 14% do total -, cujos níveis de desigualdade in-terna somente são superados no conjunto de 92 países considerados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) pela África do Sul e Malawi.

Um destacado aluno de Jaguaribe, Luis Bresser Pereira, em um trabalho onde resenha os três momentos de sua obra45, destaca que se em algo pecou o hoje decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais do Rio de Janeiro, é por “excesso de otimismo” frente a cada nova etapa que se abria no Brasil. Porém, esse não é um problema de caráter, mas sim é uma lógica que advém de depositar a confiança mais de uma vez defraudada46 nos representantes políticos de uma classe que durante todo o século XX deu provas mais que suficientes de sua completa incapacidade para tirar a América Latina da espiral da dependência e do subde-senvolvimento.

Porém, e Chávez? Situado ã esquerda de tudo o que coloca Jaguaribe, e com o inestimável auxílio que recebeu pelo aumento do preço do barril de petróleo para quase 50 dólares, seu projeto “bolivariano” assemelha-se ã retórica dos primeiros governos peronistas, mas com uma relação comercial muitíssimo mais estreita com os EUA e sem apoiar-se na classe operária como “coluna vertebral” mas nas forças armadas e nas massas pauperizadas que se viram beneficiadas com a ajuda estatal. Uma versão moderada do que Trotsky chamava governos bonapartistas sui generis de esquerda.47 O certo é que em quatro anos de governo, para além da “onde chavista” provocada pelo triunfo do NO no referendo revocatório, as transformações sociais ocorridas na Venezuela foram muito menores que as realizadas por Cárdenas no Mé-xico ou pelo próprio Perón na Argentina. E não por ausência de participação das massas, que sustentaram Chávez contra os distintos embates da oligarquia. Depois que a ação das massas derrota nas ruas o golpe falido de abril de 2002 e o lockout patronal de 2003, e depois da derrota eleitoral da oposição burguesa no referendum, a política imperialista parece apostar na estabilidade do governo chavista, cujo discurso se tornou crescentemente conciliador em relação ao“empresariado” nativo e estran-geiro. Ainda que seu governo, diferentemente dos outros da região, tenha um discurso com tintura “antiimperialista”, paga respeitosamente a dívida pública venezuelana, que chega a aproximadamente 40% de seu PIB, e suas colocações sobre a “unidade latino-americana” apenas variam da perspectiva de constituir um bloco comercial comum que favoreça a situação dos capitalistas nativos que impulsionam Kirchner ou Lula. Como no resto do continente, somente se a classe operária venezuelana avança em sua independência política e toma a direção da luta antiimperialista, poderá terminar com a dependência e o atraso.

Pouco antes de seu assassinato no México pelas mãos de um capanga de Stálin, Trotsky recordava a perspectiva estratégica colocada pela nascente IV Internacional para América Latina:

A América do Sul e a América Central somente poderão romper com o atraso e a escravidão unindo todos os seus Estados em uma poderosa federação. Mas não será a atrasada burguesia sul-americana, essa sucursal do imperia-lismo estrangeiro, a chamada a resolver essa tarefa, mas sim o jovem proleta-riado sul-americano, que dirigirá as massas oprimidas. A consigna que pre-sidirá a luta contra a violência e as intrigas do imperialismo mundial e contra a sangrenta exploração das camarilhas compradoras nativas será, portanto: pelos Estados Unidos Socialistas das Américas do Sul e Central.48

Depois de mais de meio século, essa perspectiva é essencialmente atual. Só que nosso proletariado já não é jovem, mas acumulou uma grande experiência política e de luta. Hoje está se recuperando de distintas derrotas, como é o caso que mencionamos dos mineiros bolivianos, o setor que protagonizou a revolução de 1952, foi organizador da Assembléia Popular de 1971 e derrotou a ocupação de La Paz em 1985.

Nossa América Latina é muito mais urbana do que a conheceu Trotsky, mas ao mesmo tempo nos últimos anos voltou a mostrar o potencial revolucionário de seu campesinato, onde a reivindicação histórica pela terra se expressou muitas vezes em demandas de direitos e autonomia cultural para os povos originários. Aqui estão os setores que a classe operária deve hegemonizar para impulsionar a aliança revolu-cionária que permita reverter a decadência.

Ao contrário do que pensam Jaguaribe e outros como ele, a esperança latino-americana está em que os milhões de trabalhadores de nossa região não depositem desta vez a confiança em que seus padecimentos serão superados pelas mãos dos exploradores nativos. Tinha razão Liborio Justo quando sustentava:

Não se equivocam aqueles que crêem que a libertação e integração da América Latina depende, antes de tudo, da conjunção e do entendimento argentino e brasileiro... porque os dois países estão destinados, mediante a aliança de seu proletariado, a ser a vanguarda na luta pelo socialismo no continente.49

Mas para que essa perspectiva se concretize, nossas classes operárias devem conquistas sua independência política, condição para poder verdadeiramente dirigir o conjunto das massas oprimidas na luta contra a dominação imperialista. No mesmo sentido que para Engels a classe operária era a digna herdeira do melhor que havia dado a filosofia clássica alemã, nossa classe operária latino-americana é a herdeira das aspirações da unidade do subcontinente que colocaram os independentistas de dois séculos atrás.

Os intelectuais orgânicos da “Europa do capital”

Concluamos a análise da tipologia que realizamos sobre as correntes de idéias dominantes na intelectualidade, considerando aqueles que pretendem se situar em uma “terceira via” das duas primeiras tendências analisadas. Entre eles, sobressai um variado arco de teóricos europeus que coincidem em apresentar a União Européia como protótipo da tendência ã conformação de “Estados pós-nacionais”. É uma posição apresentada, por exemplo, pelo teórico da “sociedade de risco”50, Ulrich Beck, que sustenta a necessidade de por em pé um “euro militar”. E é também o que expres-saram em um muito difundido documento conjunto publicado durante a guerra do Iraque, Europa: em defesa de uma política exterior comum, Jürgen Habermas - o de-fensor da tese da “modernidade como projeto inacabado” - e Jacques Derrida - a referência principal do pós-estruturalismo desconstrutivista.

Diante da divisão nas filas imperialistas que mostrou a guerra, o projeto im-perialista da União Européia foi apresentado por seus “intelectuais orgânicos” como o único capaz de frear o “unilateralismo” norte-americano, a partir dos “valores” dife-rentes que portaria o Estado único europeu. Sua própria história particular tendo sofrido duas guerras mundiais travadas preponderantemente em território próprio, é o que permitiria ás principais potências européias colocarem-se como centro orga-nizador de um novo tipo de poder internacional, oposto ao encarnado pela política bushista. Como diz o texto mencionado:

Cada uma das grandes nações européias viveu uma época dobrada de de-senvolvimento de poder imperial e, o que é importante em nosso contexto, também tiveram que digerir a experiência da perda de um império. Essa expe-riência de decadência se une em muitos casos ã perda de impérios coloniais. Com a distância crescente entre poder imperial e história colonial, as potências européias têm agora a oportunidade de alcançar também uma distância reflexiva de si mesmas. Assim puderam aprender a entender a si mesmas no papel discutível dos vencedores da perspectiva dos derrotados, ao fazerem-se res-ponsáveis, como vencedoras, pela violência de uma modernização imposta. Pode ser que isto seja o que fomentou o abandono do eurocentrismo e deu um novo impulso ã esperança kantiana de uma política interior mundial .

“Esperança” que Kant, o grande filosofo de Köenisberg colocou em 1784, em seu livro Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, onde pressagiava o surgimento de uma “unificação perfeita da espécie humana através da cidadania comum”. Isso seria, segundo Kant, o cumprimento do “supremo desígnio da Natureza”: já que o planeta que habitamos é uma esfera, é impossível aumentar a própria distância sem cancelá-la em última instância, a superfície do planta em que vivemos não permite uma “dispersão infinita”, e a final de contas todos teremos que aprender a ser bons vizinhos pelo simples fato de que não possuímos outro lugar aonde ir. A superfície da terra é nossa propriedade comum, nenhum de nós tem mais “direito” de ocupá-la do que qualquer outro membro da espécie humana. Assim, ao final, no momento em que os limites da dispersão se tenham feito sentir, não haveria para Kant outra opção que não a de vivermos juntos e ajudarmo-nos mutuamente.

Mas os séculos seguintes mostraram que a burguesia, longe de tirar a humanidade das guerras e levá-la pelo caminho do “progresso” com o qual sonhavam os filósofos do Iluminismo, deu lugar a uma ordem social onde as inigualáveis conquistas no ter-reno da ciência e da tecnologia viram-se acompanhadas por horrores superiores a tudo o que a humanidade havia conhecido previamente, de Verdún a Auschwitz e a Nagasaki e Hiroshima, sem esquecer os repetidos massacres coloniais das potências imperialistas, da Índia a Argélia e Vietnã. Particularmente o século XX, o século que nasceu com o capitalismo já em sua fase imperialista, foi pródigo em acontecimentos desse tipo. Prediz o surgimento da União Européia, que já reúne 25 países, uma mu-dança desta dinâmica? É a Europa a aposta possível frente ao imperialismo puro e duro dos Estados Unidos? Os fatos não sugerem nada disso. Em primeiro lugar, a União Européia desenvolveu-se empurrada pelas próprias necessidades da com-petição interimperialista. Foi para fazer frente ã competição norte-americana que a França e a Alemanha preferiram colocar em segundo plano suas reticências comuns e atuar como um “eixo duro” da UE, ainda com muitas contradições. Assim foram avançando até a situação atual, onde o fato mais importante foi a existência de uma moeda e de um Banco Central comuns e, mais recentemente, sua ampliação aos países do leste e centro da Europa. Ainda que os avanços sejam grandes em relação aos precedentes históricos, a UE não constitui um “Estado pós-nacional”, mas sim um acordo supra-estatal, especialmente limitado a atuar como “mercado comum”, com o qual os capitalista europeus buscam superar ã sua maneira a contradição entre a “economia e a nação”52, que como dizia Trotsky é a tendência básica do capitalismo na época imperialista.

Mas a guerra do Iraque, com a divisão entre a “velha” e a “nova” Europa, mos-trou a impossibilidade da UE para ter isso que reivindicam Derrida e Habermas: uma política externa comum, ou a possibilidade de avançar em transformar os exércitos nacionais em uma força européia de defesa com um comando comum, o “euro militar” que reivindica Beck. Porém o certo é que ainda se especulássemos com a improvável materialização dessa realidade não teríamos de que nos alegrar. Seria expressão de um crescimento dos antagonismos interimperialistas e não um passo a um governo mundial “multipolar” que expressasse a “esperança kantiana” como pressagiam os intelectuais orgânicos da “Europa do capital”. A lógica de colocar freios a um militarismo imperialista com outro somente pode levar, como o fez no século XX, a novas catástrofes.

Além disso, o que esses teóricos encobrem é que os critérios fixados nos tratados sobre os quais avançou a União Européia acompanharam a ofensiva “neoliberal”, ao ponto que o projeto de Constituição Européia, sobre o qual devem pronunciar-se nos próximos dois anos os distintos países membros, dá status constitucional a estes prin-cípios ao colocar que “os Estados membros da União devem atuar de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberta com livre competição”. Nestes anos, as restrições estabelecidas no Tratado de Maastricht e no Pacto pela Estabilidade e o Emprego, que entre outras questões limita o déficit que podem possuir os distintos Estados a 3% do PIB, foram utilizadas como desculpas pelos distintos governos para justificar as políticas privatizadoras e os planos de “flexibilização” do emprego contra os trabalhadores, mostrando o caráter profundamente antioperário da UE.

O futuro da UE como pólo de poder imperialista está aberto, com dois setores centrais em tensão em seu seio, um mais “atlantista”, que aponta para continuar a aliança subordinada aos EUA que se deu durante a “guerra fria”, e outro que pode-ríamos chamar “europeísta”, que empurra ã uma política imperialista mais autônoma. Se a Grã Bretanha expressa mais claramente a primeira tendência e a França e a Alemanha a segunda, todos os países se vêem cruzados internamente pela tensão de como localizar-se frente à quele que ainda é a potência dominante.53 O apoio ã União Européia atual é o apoio ã “Europa do capital”, da qual a reivindicação de seus su-postos “valores democráticos” somente pode ser obra de ingênuos incuráveis ou do mais cruel cinismo. Ou não são tropas européias as que ocupam atualmente o Afe-ganistão com os “unilaterais” norte-americanos? Ou acaso não é a “democrática” França a que acompanha os Estados Unidos no Haiti e que tem tropas em grande par-te do continente africano?

“Os Estados Unidos Socialistas da Europa”: eis a perspectiva estratégica para opor-se tanto à queles que utilizam a justa aspiração de unir os distintos países em um só Estado europeu para favorecer o interesse dos monopólios como à queles que se opõem ao processo em curso em favor da reacionária defesa da soberania de sua res-pectiva nação imperialista. É ã classe trabalhadora que corresponde no novo século retomar esta perspectiva de luta. É ela a que pode materializar o que há de perdurável na ilusão kantiana de superar o estágio das guerras entre as nações, questão hoje in-dissoluvelmente ligada ã socialização dos meios de produção e a terminar com toda forma de imperialismo.

O marxismo revolucionário do século XXI

Voltemos então novamente a Trotsky. Nesse extenso artigo tentamos demonstrar como ao não considerar que o capitalismo é incapaz de levar qualquer uma de suas tendências até o final e que se desenvolve de forma desigual e combinada, as distintas correntes de idéias que predominam no pensamento contemporâneo são incapazes não só de dar uma saída aos grandes problemas que hoje enfrenta a humanidade, mas inclusive de fazer um diagnóstico medianamente certeiro. Por outro lado, em po-lêmica com as afirmações de distintos autores, fomos traçando um rastro que nos permita delinear o novo marco estratégico com o qual devemos nos enfrentar.

Precisamente da atualidade que mantém os pressupostos com os que Trotsky analisou a dinâmica do capitalismo surge a vigência que têm a teoria da revolução permanente e o programa transicional. Ainda que sua aritmética tenha variado dos tempos em que foram escritos originalmente (em alguns casos desenvolvendo fenô-menos que naqueles tempos se expressavam embrionariamente), a álgebra que pro-põem se mantém, em seus aspectos essenciais.

Não obstante o processo de internacionalização do capital vivido nos últimos anos, toda estratégia que se proponha ir “para além do capital” não pode prescindir da luta pela derrubada revolucionária do poder do Estado burguês e sua substituição por um Estado baseado no armamento do povo e em conselhos operários, onde os trabalhadores exerçam a democracia direta, planificando a economia e impondo sua vontade ã minoria de exploradores ao mesmo tempo que se defendam da inevitável agressão externa. Em suma, exercendo a “ditadura do proletariado”, como desenvol-vemos no outro artigo que integra este dossiê. Entretanto, a classe trabalhadora, que no período neoliberal aumentou seu poder social ao mesmo tempo que foi fragmentada e posta na defensiva, não poderá desempenhar um papel de articulador do conjunto das classes subalternas se não for capaz de conquistar sua própria unidade levantar de forma audaz as demandas democráticas de toda “nação oprimida” nos países sub-jugados, e se, mas em geral, não for capaz de propor uma alternativa frente ás distintas formas de opressão e ás verdadeiras “crises civilizatórias” (como a ecológica) as quais levou o domínio capitalista.

Longe de considerar que com a conquista do poder a tarefa está “noventa por cento” resolvida (como sustentava Stálin) afirmamos que as revoluções socialistas do século XXI também se enfrentarão não só a um período de extensão da revolução no terreno internacional mas ao que para Trotsky era o caráter permanente da revolução socialista “como tal”. Um processo no qual ao longo:

de um período de duração indefinida e de uma luta interna constante, vão se transformando todas as relações sociais (...) As revoluções da economia, da técnica, da ciência, da família, dos costumes, se desenvolvem em uma complexa ação recíproca que não permite ã sociedade alcançar o equilíbrio.54

Da mesma forma que no século anterior, esse processo estará inevitavelmente condicionado não somente pelos avanços da revolução no terreno internacional mas pela situação mais geral da sociedade onde a revolução se produza, pela com-binação entre o “adianto” e o “atraso” existente na mesma. Obviamente, contar com os meios técnicos e científicos atuais desenvolvidos pelo capitalismo facilitaria enor-memente a tarefa em relação ao que tiveram que enfrentar aqueles que há menos de um século se atreveram a “tomar o céu por assalto”.

Os desenvolvimentos científicos e técnicos existentes abrem, para a humanidade, um potencial imenso ao mesmo tempo que seu domínio por parte do capital os trans-forma em um verdadeiro “risco” para nossa existência, multiplicando inclusive seu potencial de afetar a sobrevivência de toda a espécie.

Poucos messes antes da explosão da Segunda Guerra Mundial, Trotsky dizia:

O capitalismo tem o duplo mérito histórico de ter elevado a técnica a um alto nível e de ter ligado todas as partes do mundo com laços econômicos. Desse modo proporcionou os pré-requisitos materiais para a utilização sistemática de todos os recursos de nosso planeta. Entretanto, o capitalismo não se en-contra em situação de cumprir essa tarefa urgente. O núcleo de sua expansão segue sendo o Estado nacional com suas fronteiras, suas alfândegas e seus exércitos. Não obstante, as forças produtivas superaram faz tempo os limites do Estado nacional, transformando, por conseqüência, o que era antes um fa-tor histórico progressivo em uma restrição insuportável. As guerras impe-rialistas não são outra coisa senão explosões das forças produtivas contra as fronteiras do Estado que se tornaram demasiado estreitas para elas.55

Se isso era uma realidade no final dos anos 1930, que dirá de nossos dias?

Frente aos desafios de nosso tempo, a perspectiva colocada então por Trotsky segue dando conta do horizonte revolucionário de nossa época:

As reformas parciais e os remendos para nada servirão. A evolução histórica chegou a uma de suas etapas decisivas, na qual unicamente a intervenção direta das massas é capaz de varrer os obstáculos reacionários e de assentar bases de um novo regime. A abolição da propriedade privada dos meios de produção é a primeira condição para a economia planificada, quer dizer, para a introdução da razão na esfera das relações humanas, primeiro em uma escala nacional e, finalmente, em uma escala mundial. (...) Com o exemplo a ajuda das nações adiantadas, as nações atrasadas também serão arrastadas pela corrente do socialismo. (...) A humanidade libertada chegará a seu ápice.56

Muito longe do possibilismo das teorias dominantes, é atrás amplitude de objetivos que deve desenvolver-se o marxismo revolucionário no século XXI.

* * *

No exílio político a que foi confinado em San Casciano a partir de 1512, quando o restaurado poder dos Médici se instalou sobre as ruínas da república florentina, Maquiavel costumava passar tardes inteiras em seu escritório dialogando com os grandes clássicos da antiguidade sobre como responder aos desafios dos novos tempos. Nesse contexto forjou as obras que lhe dariam transcendência histórica e fa-riam dele precursor da teoria política moderna.

Sob o reinado “neoliberal” os marxistas revolucionários vivem um peculiar “exílio” político. Assistimos a nossa condenação como “superados pela história”, formulada pelos ocupantes temporários dos lugares de legitimação no “campo” in-telectual. Há alguns anos já estamos saindo daquela situação. Os tempos vão se tor-nando “preparatórios”. Não somente o capitalismo encontra-se deslegitimado, mas uma nova geração que se colocou em movimento tem feito experiências com aqueles que se colocavam como “alternativas”. O movimento operário começa a mostrar sin-tomas de reanimação. Hoje, assim como naquele então, com quem dialogar se não for com Trotsky (e com Lênin, com Rosa, com Gramsci...) na hora de pensar a perspectiva da revolução no século XXI


Notas:
1 Perry Anderson em Considerações sobre o marxismo ocidental depositava justamente no marxismo que tinha como referência a herança de Trotsky a possibilidade de recriar a teoria revolucionária no sentido dos grandes clássicos, a partir dos processos revolucionários abertos em 1968. Dez anos depois, em Nas trilhas do materialismo histórico, explicava que desde sua ótica a revolução portuguesa de 1974-75 havia sido a oportunidade perdida pela IV Internacional. A partir daí, Anderson, que sempre foi mais um seguidor das teses de Isaac Deutscher do que das Trotsky, foi assumindo posições crescentemente céticas, impactado pelo avanço das políticas neoliberais nos anos 1980 e 1990.

2 Chama atenção na obra de Toni Negri e de outros teóricos presumidamente “renovadores” da obra de Marx a ausência de qualquer diálogo com Trotsky. Não se pode explicar isso meramente pelo fato de que na tradição da esquerda italiana Trotsky tenha sido negado a partir da enorme hegemonia intelectual do Partido Comunista Italiano, outrora o maior partido comunista do ocidente. Apesar de seu declarado anti-stalinismo, nunca o “operaísmo” incorporou Trotsky em seu sistema conceitual. Entretanto, Negri passou mais de uma década na França, país onde o trotskismo tem um importante peso político e intelectuais de relevância se reivindicam de tal tra-dição, sem que o pensamento de Trotsky tenha influenciado sua obra. O certo é que Trotsky, para todo pensador que como Negri se reclama “antidialético”, é uma presença muito incômoda.

3 A respeito das posições de Trotsky e dos trotskistas frente ao conflito iniciado em 1939 pode-se consultar a muito completa compilação de escritos Guerra y Revolución. Uma visión alter-nativa de la Segunda Guerra Mundial, editada recentemente pelo CEIP León Trotsky na Argen-tina, www.ceip.org.ar.

4 Perry Anderson, Considerações sobre o marxismo ocidental, Ed. Boitempo, São Paulo 2004.

5 León Trotsky, El marxismo y nuestra época, 26 de fevereiro de 1939, em Naturaleza y dinámica del capitalismo y la economía de transición, ediciones CEIP “León Trotsky”, Buenos Aires, 1999, p. 182 e 183. Trotsky segue aqui um raciocínio similar ao de Lênin quando em O Imperialismo, fase superior do capitalismo, discute contra as teses de Kautsky do “ultraimperialismo”. Segundo Lênin, era certo que as tendências da economia capitalista tendiam a um “único trust mundial”. Mas, por sua vez, essa tendência se contrapunha com outras que faziam impossível a materialização dessa perspectiva.

6 Op. cit. E continua o raciocínio: “Desde o auge de uma prosperidade sem precedentes, a economia dos Estados Unidos foi lançada ao abismo de uma prostração monstruosa. Ninguém poderia haver concebido na época de Marx convulsões de tal magnitude. A renda nacional dos Estados Unidos se elevara pela primeira vez em 1920 a 69 bilhões de dólares p ara cair no ano seguinte a 50 bilhões de dólares (uma queda de 27%). Como conseqüência da prosperidade dos anos seguintes, a renda nacional se elevou de novo, em 1929, a seu ponto máximo, de 81 bi-lhões de dólares, parar cair em 1932 a 40 bilhões de dólares, quer dizer, a menos da metade! Durante os nove anos de 1930 a 1938 perderam-se aproximadamente 43 milhões de anos de tra-balho humano e 133 bilhões de dólares da renda nacional, tendo em conta o trabalho e a renda de 1929. Se tudo isso não é anarquia, qual pode ser o significado dessa palavra?”.

7 León Trotsky, Historia de la Revolución Rusa, Sarpe, Madrid, 1985, pág. 33.

8 León Trotsky, “La revolución permanente”, in La teoría de la revolución permanente, CEIP, Buenos Aires, 2002, p. 402.

9 Zigmunt Bauman, La sociedad sitiada, Fondo de Cultura Económica de Argentina, Buenos Aires, 2004, p. 92.

10 Op. cit., p. 31.

11 Antonio Negri, Guías. Cinco lecciones en torno a Imperio, Editorial Paidós, Buenos Aires, 2004, p. 13.

12 Nesse livro Negri recorre a uma tipologia originalmente de seu companheiro de idéias Michael Hardt para construir uma tipologia dos posicionamentos teóricos acerca do par “globalização/democracia”: “Em tal esquema, e para ordenar as diversificas posições surgidas a respeito elege-se uma classificação quádrupla: uma primeira divisão entre aqueles que de-fendem que a globalização reforça e desenvolve a democracia e aqueles que, pelo contrário, sustentam que a bloqueia ou inibe. Essa primeira divisão é, por assim dizer, multiplicada por dois: ambas as concepções, otimista e pessimista, podem ser consideradas pela ‘direita’ ou pela ‘esquerda’”. Surgem assim quatro pontos de vista:

1) A posição social-democrata clássica, cuja formulação mais clara seria a de Paul Hirst e Grahame Thompson. Ela sustenta que “a globalização é um mito se exclui o Estado-nação; a globalização adquire poder unicamente a partir do desenvolvimento do Estado-nação (...) uma política democrática só pode ser levada a cabo no âmbito do Estado-nação. Esta posição com-preende outra, ainda assim de origem social-democrata, que sustenta: o declínio da so-berania nacional debilita ou elimina as proteções que foram construídas anteriormente no Estado-nação em benefício da sociedade contra as pretensões capitalistas... Eis aqui, portanto, a tese que po-deria ser denominada ‘globalização contra democracia’ vista pela esquerda”.

2) A posição do cosmopolitismo liberal, em particular as teses desenvolvidas por Richard Falk, David Held e Ulrich Beck. Eles sustentam que “a democracia é compatível com a globa-lização. A globalização permite a extensão dos direitos humanos a todos os países, e a mis-cigenação cultural pode promover o entendimento humano e a harmonia não somente das tran-sações, mas também dos costumes. A aldeia global pode converter-se em uma sociedade civil global, atravessada por um governo cosmopolita ou organizada em um Estado transnacional. Esta é uma versão da esquerda, liberal e humanista, da tese segundo a qual a globalização aju-da a democracia. A sociedade global se concebe assim em termos otimistas como um processo que pode conduzir a formas de governo mundial”.

3) A posição da democracia capitalista: “A globalização do capital, sustenta, por exem-plo,Thomas Friedman, “é em si mesma a globalização da democracia. Esta posição foi levada ao extremo, até posições caricaturescas, por Francis Fukuyama, que afirmou que o american way of life, isto é, a hegemonia dos EUA, constituía em si mesmo o triunfo da democracia global, e com ele o fim da história”.

4) A posição do conservadorismo tradicionalista: “Finalmente, a posição pessimista da relação globalização/democracia desde o ponto de vista da direita. São particularmente interessantes a esse respeito as argumentações de John Gray, que sustenta, em primeiro lugar, que a falta de controle do Estado-nação conduz ã anarquia e ã instabilidade globais e, em se-gundo lugar, que a expansão global do american way of life não pode senão ofender as iden-tidades nacionais e esmagar a autodeterminação dos povos, provocando com isso as con-seqüentes instabilidades. Com esta posição pessimista... se combina a tese agressiva de Samuel Huntington, que propõe o ‘choque de civilizações’ como solução para a dificuldade de expan-dir a democracia na globalização - a análise é prescritiva e belicosa.”

Frente a essas posições, ainda que concedendo valor a cada uma delas, Negri afirma a diferença do enfoque do Império: “Cada uma das posições mencionadas toma o problema da formação da ordem global, por assim dizer, pela conclusão: trata-se, bem pelo contrário, de atender ao processo da globalização (e em seu interior a relação com a democracia) visto desde a perspectiva das dinâmicas que o produzem. A variante metodológica de Império, com respeito ás posições acima descritas, consiste em considerar o processo de globalização, não tanto em sua representação final quanto em suas dinâmicas. Dinâmicas estas essencialmente determinadas pelos conflitos que se originam dentro do desenvolvimento capitalista”. No entanto, são justamente os erros metodológicos em compreender estas dinâmicas o que está na base das conclusões mais equivocadas em Império.

13 Idem. p. 19.

14 Idem. p. 176.

15 É certo que sob o governo de Bush parece ter passado o momento de esplendor que possuiu essa tese durante os dois governos de Clinton, quando o interesse imperialista norte-americano buscava cobrir-se com a legitimidade das Nações Unidas ou da OTAN e o crescimento da sua economia dava base aos desvarios sobre a “nova economia” e a capacidade do capitalismo pa-ra evitar as crises e, ainda, os ciclos econômicos. Mas, de maneira alguma, há se que dar esses argumentos como superados: basta que Kerry chegue ã presidência e imprima um tom mais “multilateral” para a política externa norte-americana, ou que o débil crescimento da economia mundial se mantenha por alguns anos para que novamente posições do estilo sejam elevadas ao posto de verdades sacrossantas.

16 Vide a posição de Negri frente aos governos de Lula e Kirchner e se verá como o teórico do “poder constituinte” termina aos pés dos representantes do “poder constituído”: “Meu juízo so-bre a política do governo Lula é absolutamente positivo. É evidente que os problemas do Brasil - e mais em geral os da América Latina, são enormes, e que em alguns meses não poderão ser resolvidos. Mas também é evidente que a única maneira de resolver-los é buscar uma solução de nível global. Nestes países, a revolução não é possível: não foi possível na União Soviética, então na América Latina... Seria completamente estúpido imaginar um futuro revolucionário pa-ra países como Brasil ou Argentina. Eu estou muito aborrecido com certos setores da esquerda lo-cal que não compreenderam em absoluto o que procura fazer Lula, o que procura fazer Kirchner. Temos a impressão que perderam toda faculdade crítica. Compreender a decisão do governo argentino de não pagar a dívida, isso é o importante! Compreender que isso não seria possível sem o apoio do governo brasileiro. Compreender que para bloquear Cancun, quer dizer um pro-jeto imperial violento e injusto, seria necessário obter a aliança da Índia e da China - e foi atra-vés de Lula que isso foi possível.” (Entrevista publicada na Revista Le Passant Ordinaire n° 48, abril/junho de 2004.)

17 Ver a introdução de Paula Bach ã compilação de trabalhos de Trotsky com o título Naturaleza y dinámica del capitalismo y la economía de transición, CEIP, Buenos Aires, 1999. Também o artigo de Christian Castillo La crisis y la curva de desarrollo capitalista, na Estrategia Internacional n° 7.

18 Entre outras, as análises carregadas do economicismo catastrofista características do Partido Obrero na Argentina.

19 Dizemos “relativo” porque a estabilidade e o forte crescimento econômico nos centros im-perialistas se viu acompanhada por uma inédita atividade revolucionária no mundo colonial e semicolonial (que sob Yalta foram os verdadeiros “elos débeis” da revolução mundial) e que, depois da revolução chinesa e a expropriação da burguesia nos países do glacis, um terço do mapa mundial permaneceu vedado ã exploração direta do capital.

20 Os dados foram tomado de: Samanta Paladino e Marco Vivarelli, The emplyment intensity of economic growth in the G-7 countries, in International Labour Review, 1997.

21 David Harvey, “Los nuevos rostros del imperialismo”, entrevista publicada na Revista Herramienta n° 26, julho de 2004.

22 Daniel Bensaïd, Le sourire du Spectre. Nouvel esprit du communisme, Éditions Michalon, París, 2000 (tradução nossa).

23 Paolo Virno devidamente reconheceu: “Se identificamos a nova figura da soberania mundial com os anos de Clinton, chamando-a de ‘Império’, nos arriscamos a emudecer quando Bush en-tra em cena. Penso que somente agora, com a guerra do Iraque, começa o verdadeiro ‘depois-do-Muro’ quer dizer, a verdadeira, grande redefinição das formas políticas. Somente agora começa uma ‘fase constituinte’. Terrível, certamente, mas com vias abertas, ainda que seja somente porq-ue nela atua o movimento de movimentos”. Página 12, Argentina, 18/07/04.

24 Com as óbvias diferenças do caso, não será historicamente o papel jogado pelos “antica-pitalistas” de nossos dias similar ao dos populistas russos, que depois do período de reação mundial que seguiu a derrota da Comuna de Paris, abriram caminho para o amadurecimento do movimento operário revolucionário que protagonizou as revoluções de 1905 e 1917? Não será sua presença a antecipação da volta de cena do único sujeito que pode dar uma perspectiva pela positiva, a socialização geral dos meios de produção e a planificação democrática da economia mundial, ao que até hoje tem sido “resistência anticapitalista”?

25 Paolo Virno, Página 12, Argentina, 18/07/04.

26 No Brasil, essas idéias são colocadas por Francisco de Oliveira, fundador do PT e primeiro intelectual de reconhecimento nacional a romper publicamente com esse partido depois da chegada de Lula ao governo federal. Atualmente se encontra no PSOL, partido fundado recentemente pelos parlamentares que foram expulsos do PT em 2003 por votar contra a reforma da previdência de Lula. Em junho de 2003, no artigo intitulado “O Ornitorrinco” (ver artigo de Edison Salles nesta revista), expressão com a qual caracteriza o Brasil, Francisco de Oliveira afirma: “Avassalada pela Terceira Revolução Industrial, ou molecular-digital, em combinação com o movimento da mundialização do capital, a produtividade do trabalho dá um salto mortal em direção ã plenitude do trabalho abstrato (...) Aqui fundem-se mais-valia absoluta e relativa: na forma absoluta, o trabalho informal não produz mais do que uma reposição constante, por produto, do que seria o salário; e o capital usa o trabalhado somente quando necessita dele; na forma relativa, é o avanço da produtividade do trabalho nos setores hard da acumulação molecular digital que permite a utilização do trabalho informal. (...) Aterrissando na periferia, o efeito desse espantoso aumento da produtividade do trabalho, desse trabalho abstrato virtual, não pode ser mais devastador. (...) Entroncado com a chama reestruturação produtiva, assiste-se ao que Castel chama de ‘desfiliação’, isto é, a desconstrução da relação salarial, que se dá em todos os níveis e setores. Terceirização, precarização, flexibilização (...): grupos de jovens nos cruzamentos vendendo qualquer coisa, entregando propaganda de novos apartamentos, lavando-sujando vidros de carros, ambulantes por todos os lugares (...) Pasmemos teoricamente: trata-se de trabalho abstrato virtual. (...) As forças do trabalho já não tem ‘força’ social, erodida pela reestruturação produtiva e pelo trabalho abstrato-virtual e ‘força’ política, posto que dificilmente tais mudanças na base técnico-material da produção deixariam de repercutir na formação de classe.”

27 Ver Juan Chingo e Julio Sorel, “Crisis del trabajo o crisis del capitalismo?”, in Estrategia Inter-nacional n° 10; e Christian Castillo, “Comunismo sem transição?”, in Estrategia Internacional n° 17, disponíveis no site www.ft.org.ar.

28 Uma boa crítica dessas teses podem ser encontradas em Michel Husson, “Hemos entrado al capitalismo cognitivo?”, publicada em espanhol na Revista Lucha de Clases N° 2/3, abril de 2004, disponível no site www.pts.org.ar.

29 Isso pode ser observado, por exemplo, nas análises de Ulrich Beck, que realiza a falácia de identificar crescimento da precarização do emprego com “extinção do trabalho assalariado”. Em seu texto “Políticas alternativas ã sociedade do trabalho” reconhece que “quando se observa quais são as formas de trabalho que surgem naqueles âmbitos onde mais avançadas estão a tec-nologia da informação e o trabalho intelectual, em minha opinião, o traço mais importante consiste em que em todo o mundo, o maior índice de crescimento do emprego assalariado con-siste de empregos de condições precárias, em trabalho flexibilizado. Assistimos a um processo em que o trabalho formal é substituído por trabalho informal (...) tanto em termos contratuais como espaciais e temporais, o trabalho informal substitui o trabalho formal(...) o significado desse de-senvolvimento... é profundamente ambivalente. Não somente concerne aos trabalhos pouco qualificados, mas também aos empregos de alta qualificação (...) Quero resumir meu diagnóstico: o trabalho perde importância e é fragmentado; o conhecimento e o capital adquirem maior im-portância”. Mas suas “respostas” não vão além de uma série de lugares comuns, inclusive quan-do intercambia com total leviandade o pressuposto de que o trabalho assalariado “se precariza” com o de que o trabalho assalariado “desaparece”. “Ampliar a educação”; “transformar a falta de trabalho assalariado em uma nova oportunidade libertadora”; “transformar a carência de tra-balho assalariado em bem-estar que se meça em tempo e em uma maior soberania para o indivíduo (a partir de) desvincular a renda básica e os direitos elementares ao status de cidadão e não ao de trabalhador”; “direito ao trabalho descontínuo”; “participação do trabalho nos lu-cros do capital”; ou o “modelo” com que Beck se “identifica particularmente”: “a promoção do terceiro setor da sociedade civil”, não é mais do que outra variante das propostas de Jeremy Rifkin em O fim do trabalho. Vejamos em que consiste essa última maravilha: “A proposta consiste em desenvolver centros auto-organizados nos quais as pessoas façam o que realmente querem fazer; colocam-se a sua disposição os recursos básicos necessários providos pelos municípios e os es-tados, mas também por auspícios corporativos. No nível municipal se discutem quais são as ver-dadeiras prioridades para resolver com o trabalho cidadão; entre as atividades também podem incluir-se temas políticos”. Quer dizer, a “imaginação” de um dos sociólogos estrela do momento não vai além de pensar “saídas” que são meros suportes “progressistas” para a transferência de funções estatais ã “sociedade civil”, quer dizer, um apoio encoberto a política neoliberal de “re-dução dos déficits estatais”.

30 Dados tomados de Labour Force Statistics 1982-2002 (OCDE 2003), citados por Mauricio Ro-jas, Mitos del Milenio. El fin del trabajo y los nuevos profetas del Apocalipsis, Timbro, Buenos Ai-res, março de 2004. Ainda que o texto seja uma celebração do neoliberalismo cheio de interpretações falaciosas, brinda com dados importantes para desmentir certas afirmações da moda.

31 Os outros países considerados na mostra são: Holanda, Irlanda, Espanha, Portugal, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Dinamarca, Austrália, Japão, França e Itália, agrupados em ordem decrescente segundo as porcentagens da variação percentual da relação entre emprego e população comparando os anos 1980-82 e 2000-02.

32 Os outros doze países são: China, Chile, Coréia do Sul, México, Venezuela, Indonésia, Brasil, Tailà¢ndia, Taiwan, Egito, Malásia e Filipinas, ordenados segundo o mesmo critério empregado na nota anterior.

33 Chris Harman, “The workers of the world”, em International Socialism N° 96, 2002. Do total de empregados assalariados que existem no mundo estão descontados os setores da burguesia que recebem salários corporativos e os setores da “nova classe média” que obtém pagamentos su-periores ao valor que gera, em troca de ajudar a controlar a massa de trabalhadores, setores que em seu conjunto somam ao redor de 10% do total de assalariados. O trabalho de Harman toma como fonte o estudo de Deon Filmer “Estimating the World at Work”, informe para o Banco Mun-dial, Informe do Desenvolvimento Mundial 1995. O trabalho está disponível no site do Banco Mundial, http://monarch.worldbank.org/decweb/Working Papers/WPS1400series/wps1488.

34 Note a similaridade da problemática colocada nesse texto por Trotsky com as reflexões mais ha-bitualmente citadas de Gramsci sobre as diferenças entre as condições estratégicas da revolução proletária no atrasado “Oriente” russo e no mais avançado “Ocidente”. Sobre a relação entre ambos autores pode-se ver Emilio Albamonte e Manolo Romano, “Trotsky y Gramsci: convergencias y divergencias, y Revolución permanente y guerra de posiciones: la teoría de la revolución en Trotsky y Gramsci”, Estrategia Internacional n° 19, janeiro de 2003.

35 Em outros trabalhos indicamos que, apesar de haverem se situado ã esquerda dos grandes apa-ratos reformistas, as corrente trotskistas não souberam resistir a uma situação contra a corrente, e a IV Internacional terminou dispersando-se em uma série de tendências centristas, que mantiveram somente débeis e episódicos fios de continuidade com a herança deixada por Trotsky.

36 Ver artigo na revista Estratégia Internacional n° 21, disponível no site www.ft.org.ar.

37 Gianni Vattimo, Charles Taylor, Richard Rorty, Diálogo sobre a globalização.

38 Já dizia Trotsky sobre o New Deal, ao antecessor das políticas de welfare, no citado texto “O marxismo e nossa época”: “A política do New Deal, que trata de salvar a democracia imperialista por meio de presentes ã aristocracia operária e camponesa somente é acessível em sua grande amplitude ás nações verdadeiramente ricas, e em tal sentido é uma política norte-americana por excelência. (...) Entretanto nem sequer essa nação pode seguir vivendo indefinidamente as custas das gerações anteriores. A política do New Deal, com seus resultados fictícios e seu aumento real da dívida nacional, tem que culminar necessariamente em uma feroz reação capitalista e em uma explosão devastadora do imperialismo”.

39 Richard Rorty, Forjar nuestro país. El pensamiento de izquierdas en los Estados Unidos del siglo XX, Editorial Paidós Ibérica, Barcelona, 1999, p. 89 e 90.

40 Helio Jaguaribe, “Argentina y Brasil ante la tercera ola globalizadora”, Clarín, Argentina.

41 Idem.

42 Idem.

43 Helio Jaguaribe, “Argentina y Brasil ante sus alternativas históricas”, in Aldo Ferrer y Helio Ja-guaribe, Argentina y Brasil en la globalización. Mercosul ou ALCA?, Fondo de Cultura Econômica, Buenos Aires, 2001, p. 87 e 98.

44 Jaguaribe, que se esmera em buscar bons argumentos econômicos para justificar a con-veniência da integração regional no Mercosul frente ao ingresso ã ALCA, omite que desde a vi-gência do primeiro a dominação imperialista na região aumentou e não diminuiu. Concebido essencial-mente como um mercado de escala para atrair os investimentos multinacionais, o Mercosul cumpriu com certo êxito esse papel durante a primeira metade dos anos noventa, quanto atraiu grande parte dos “investimentos estrangeiros diretos” que foram ã periferia capitalista - os famosos “mercados emergentes” - até que a crise da tequila iniciou uma série de crises que as economias da região sofreram de forma heterogênea. Depois do pico de divergências entre Brasil e Argentina, quando a desvalorização brasileira em janeiro de 1999 ia no sentido oposto ã ma-nutenção da convertibilidade por parte da Argentina, o Mercosul pareceu recobrar nova força depois da desvalorização do peso. Entretanto, isso não significou até o momento, nenhuma mudança de qualidade no intercâmbio econômico entre ambos países, ainda que sim uma intervenção mais coordenada dos governos de Kirchner e Lula no terreno da política internacional, incluído os fóruns de comércio mundial. Isso não significa, entretanto, que essa maior coordenação seja necessariamente mais autônoma dos interesses norte-americanos, como expressa a vergonhosa participação de tropas brasileiras e argentinas na ocupação do Haiti, aliviando o esforço militar norte-americano e legitimando o verdadeiro golpe de Estado implementado pelo o Pentágono contra Aristide. Ao contrário, é uma forma de conquistar um lugar como sócio menor dentro da ordem norte-americana na América Latina, um sócio que abunda em atos e gestos para se mostrar “responsável”. A tal ponto que o mesmo Jaguaribe (que luta no Brasil por uma aliança social-democrata entre o PT de Lula e o PSDB de Cardoso, do qual foi fundador) se lamenta hoje pela “ortodoxia” fundomonetarista que mostra o governo do outrora sindicalista metalúrgico do ABC.

45 Luiz Carlos Bresser Pereira, “ Os três momentos de Hélio Jaguaribe”, in Alberto Venâncio Filho, Israel Klabin e Vicente Barreto (orgs), Estudos em Homenagem a Hélio Jaguaribe, São Paulo, Edi-tora Paz e Terra, 2000.

46 Recordemos que em 2001, no texto antes citado, indicava que, apesar da crise que vivia, a Ar-gentina possuía uma série de vantagens, entre as quais se incluía chegar “ao final do século XX como a mais educada sociedade latino-americana, com um alto nível de civilidade, magnífica dotação de recursos naturais e humanos, dispondo, com Buenos Aires, da melhor cidade da região, e tendo uma importante capacitação em indústrias leves e de tecnologia fina ..., um bom sistema interno de comunicações e de transporte e, com Fernando de la Rua, um governo sério e profundamente responsável” (Op. cit., p. 91).

47 Em “A indústria nacionalizada e a administração operária”, Trotsky escrevia analisando o go-verno de Cárdenas: “Nos países industrialmente atrasados o capital estrangeiro desempenha um papel decisivo. Daí a relativa debilidade da burguesia nacional em relação ao proletariado na-cional.Isso cria condições especiais de poder estatal. O governo oscila entre o capital estrangeiro e o nacional, entre a relativamente débil burguesia nacional e o relativamente poderoso pro-letariado. Isso dá ao governo um caráter bonapartista sui generis, de índole particular. Se eleva, por assim dizer, por cima das classes. Na realidade, pode governar ou convertendo-se em instrumento do capital estrangeiro e submetendo o proletariado com as cadeias de uma ditadura policial, ou manobrando com o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concessões, ga-nhando desse modo a possibilidade de dispor de certa liberdade em relação aos capitalistas estrangeiros. A atual política [do governo mexicano] se localiza na segunda alternativa; suas maiores conquistas são a expropriação das ferrovias e das companhias petroleiras. Essas medidas se enquadram inteiramente nos marcos do capitalismo de Estado. Entretanto, em um país semi-colonial, o capitalismo de Estado se encontra sob a grande pressão do capital privado estrangeiro e de seus governos, e não pode manter-se sem o apoio ativo dos trabalhadores. Isso é o que ex-plica porque, sem deixar que o poder real escape de suas mãos, [o governo mexicano] trata de dar ás organizações operárias uma considerável parte de responsabilidade na marcha da produção dos ramos nacionalizados da indústria”, León Trotsky, Escritos Latinoamericanos, CEIP “Leon Trotsky” Ediciones, Buenos Aires, 2000, www.ceip.org.ar.

48 León Trotsky, “El futuro de América Latina”, maio de 1940, in Escritos Latinoamericanos, CEIP “León Trotsky” Ediciones, Buenos Aires, 2000, p. 168, www.ceip.org.ar.

49 Liborio Justo, Argentina y Brasil en la integración continental, Buenos Aires, 1983.

50 Beck considera que o “risco” - que foi transformando-se em um conceito “fetiche” desde sua utilização original a meados dos anos 1980, ã mão para responder frente a fenômenos muito díspares - é um componente do que chama a “segunda modernidade”, a qual surge a partir de “uma série de processos que podem ser entendidos como uma radicalização da modernização”. Resumidamente se caracteriza porque “nos deparamos com a globalização, a individualização, a diminuição do trabalho assalariado e as crises ecológicas ao mesmo tempo e não sabemos como enfrentar todos esses desafios” (Ulrich Beck, “Políticas alternativas a la sociedad del trabajo”, in Presente y futuro del Estado de Bienestar: el debate europeo, Miño y Dávila Editores e Siempro, Bue-nos Aires, 2001, p. 14 e 15). No plano da individualização, implica que na sociedade de risco os indivíduos escolhem livremente, mas isso, longe de ser satisfatório, resulta inclusive mais frustrante: há que se tomar decisões constantemente acerca de temas que afetam de modo fundamental as vidas de todo o mundo, mas sem contar com uma base adequada de conhecimento. É a frustração que advém de tratar de dar “saídas biográficas a contradições sistêmicas”.
O que Beck denomina “segundo Iluminismo” se opõe ã meta do “primeiro”. Se para este último o objetivo era criar uma sociedade na qual as decisões fundamentais perdessem seu caráter irracional e se baseassem em uma compreensão racional do estado de coisas existente, o “segundo Iluminismo” impõe a cada sujeito da sociedade a carga de tomar decisões cruciais, que poderiam afetar ainda nossa sobrevivência, no marco de uma inevitável incerteza acerca dos resultados que poderão obter-se; incerteza radical cujo ocultamento seria a função principal das equipes gover-namentais de experts. Zizek resume bem essa situação paradoxal: “longe de que a experimentemos como libertadora, esta compulsão para decidir livremente é para nós um jogo obsceno que pro-voca angústia, uma espécie de inversão irônica da predestinação: sou considerado responsável por decisões que me vejo obrigado a tomar sem um conhecimento adequado da situação. A liberdade de decisão que se desfruta na sociedade de risco não é a liberdade de alguém que pode escolher livremente seu destino, mas sim a liberdade angustiante de alguém constantemente obrigado a to-mar decisões sem conhecer as conseqüências”. (Slavoj Zizek, El espinoso sujeto, Paidós, Buenos Aires, 2001, p. 349). Zizek vai em um sentido correto quando indica que se analisarmos as teses de Beck atentamente podemos concluir que formuladas sob o modelo do uso incontrolado da ciência e da técnica sob o capitalismo: “O caso paradigmático do ‘risco’ ...é o da nova invenção científico-tecnológica aplicada por uma empresa privada sem a mediação do debate e do controle público e democrático adequado, suscitando de tal modo o espectro de conseqüências imprevistas e ca-tastróficas no longo prazo. Não terá esse tipo de risco raiz no fato de que a lógica do mercado e do lucro está impulsionando as empresas de pro-priedade privada a seguir seu caminho e utilizar as inovações científicas e tecnológicas (ou simplesmente aumentar sua produção) sem tomar realmente em conta os efeitos a longo prazo sobre o ambiente, e também sobre a saúde da hu-manidade? (...) a conclusão que há que extrair, não é que na atual situação global, na qual as empresas privadas não alcançadas pelo controle público estão tomando decisões que podem afetar a todos, inclusive ao ponto de ameaçar nossa sobrevivência, a única solução consiste em uma espécie de socialização direta do processo produtivo? Não é a única solução avançar para uma sociedade na qual as decisões globais sobre as orientações fundamentais acerca do desenvolvimento e do emprego da capacidade produtiva estejam de algum modo nas mãos de todo o coletivo das pessoas afetadas por essas decisões?” Ao não indicar nada disso os teóricos da sociedade do risco não fazem mais do que abster-se “de questionar os princípios básicos da lógica anômica das relações de mercado e o capitalismo global”. Entretanto, no momento de pensar como atingir uma “socialização direta do processo produtivo”, Zizek (um intelectual caracterizado pelo ecletismo teórico e fortes oscilações políticas) não diz, como era de se esperar em quem aceita muito dos pressupostos dos teóricos pós-modernos sobre a perda de peso es-trutural do proletariado, mais do que balbucios.
Embora Toni Negri opine que as posições de Beck possam ser agrupadas com aquelas que a partir de um “cosmopolitismo liberal” simplesmente vêem que a “globalização beneficia a de-mocracia”, cremos que suas teses combinam aspectos dos dois tipos antes considerados. Como os “globalizadores”, opina que sucederam-se mudanças transcendentais que deixaram para trás a “modernidade clássica”. Porém é forçar as coisas dizer que sua visão de “segunda modernidade” é simplesmente celebratória. É, ao contrário, ambígua, ora “otimista” pelas possibilidades que abre, ora “pessimista” pelos perigos que acarreta. E, além disso, Beck não crê que se pode prescindir dos estados e da política, mas se coloca entre os que alentam a formação de “Estados pós-nacionais”, com a União Européia como modelo a desenvolver.

52 Leon Trotsky, “El nacionalismo y la economía”, in Naturaleza y dinámica del capitalismo y la economía de transición, op. cit., p. 138.

53 Essa impossibilidade da UE de atuar como um bloco imperialista unificado é um fato que re-tarda em parte a decadência norte-americana no cenário internacional, permitindo-lhe mais margem de manobras, se o comparamos com a situação das décadas de 1920 e 1930 do século passado, quando os Estados Unidos em ascenso desafiavam a uma Europa estancada.

54 León Trotsky, “La revolución permanente”, op. cit., p. 418.

55 León Trotsky, El Marxismo y nuestra época, op. cit., p. 196 e 197.

56 Idem.

 

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