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Cuba na encruzilhada
30 Sep 2010 |
Cuba na encruzilhada

Um programa para defender as conquistas da revolução contra o bloqueio imperialista e os planos de restauração da burocracia

Em meio a uma importante crise da economia cubana, que reflete os efeitos da crise capitalista internacional, e da continuidade do bloqueio imperialista, o presidente Raúl Castro a través da Assembléia Nacional do Poder Popular uma série de medidas econômicas, entre elas, a construção de complexos turísticos de luxo, a autorização para a abertura de pequenos negócios (a maioria sob a modalidade aplicada até então de alugar os locais aos seus empregados, ainda que o estado conservando sua propriedade), e a possibilidade de emprego privado de mão de obra.

O objetivo do governo cubano é reduzir o volumoso déficit fiscal mediante um ajuste que pressupõe a eliminação paulatina de mais de um milhão de postos de trabalho estatais, gerando as condições para que se desenvolva um mercado de trabalho que ainda não existe na ilha, a pesar das reformas pró-capitalistas que se vem introduzindo, com distintos ritmos, desde o “período especial”. A isto se somam os cortes dos benefícios sociais subsidiados que já vêm sendo implementados como a eliminação paulatina dos restaurantes públicos e os cortes de alimentos e produtos básicos a través das cadernetas de racionamento. Estas medidas vêm acompanhadas de um discurso reacionário contra o “igualitarismo” e o “paternalismo estatal” como raiz dos males da economia.

Estes anúncios ocorrem pouco tempo depois que Raúl Castro decidiu libertar 52 presos políticos detidos durante a chamada “primavera negra” de 2003. A libertação destes presos políticos foi parte das negociações abertas com a Igreja Católica e com o Estado Espanhol após a crise desatada pela morte do preso Orlando Zapata Temayo, seguida pela greve de fome do colunista opositor Guillermo Fariñas, fatos que foram utilizados pelos Estados Unidos e pela dissidência interna pró-capitalista para reforçar a pressão ao regime para avançar até a restauração capitalista.

Diante da perspectiva de que a deterioração das condições de saúde de Fariñas precipitasse uma crise interna e prejudicasse ainda mais as relações internacionais do estado cubano, principalmente com o governo espanhol que encabeça as negociações para que a União Européia (EU) abandone a chamada “posição comum” de sansões e restrições comerciais ã ilha, Raúl Castro decidiu recorrer aos “ofícios mediadores” da Igreja Católica local, o que encontrou uma boa resposta por parte do arcebispo de Havana, o cardeal Jaime Ortega.

A Igreja tem desenvolvido uma importante organização interna, com publicações e seminários desde onde seus economistas exigem abertamente “reformas estruturais”, e mantêm múltiplos laços com partidos cubanos capitalistas no exílio e com os governos imperialistas. Assim como a Igreja atuou na Polônia, na década de 1980, será um ator chave em qualquer plano de “transição” negociada com o regime até uma abertura capitalista gradual.

Estas negociações coincidiram com as primeiras aparições públicas de Fidel Castro depois de quatro anos, o que foi interpretado como um apoio do líder cubano ao rumo ditado por seu irmão, Raúl, e também um sinal aos setores do Partido Comunista de Cuba (PCC) e ã burocracia estatal, sobre tudo aqueles ligados aos novos negócios, que estariam pressionando por uma aceleração ao avanço até o capitalismo e que poderiam desencadear uma luta interna com conseqüências imprevisíveis para o regime.

Já faz 50 anos que o imperialismo norte-americano busca derrotar a revolução cubana que ainda simboliza a vanguarda da luta contra a opressão e a exploração em todo o continente. Sua defesa é parte indissolúvel da luta dos trabalhadores e das massas populares do continente contra o imperialismo, as decadentes burguesias locais e pela revolução social em toda a América Latina.

É uma tarefa prioritária para os que se reivindicam marxistas revolucionários defender um programa político claro e uma estratégia para derrotar os planos de restauração capitalista, seja esta ameaça vinda pela via da “restauração democrática” alimentada pelo imperialismo, seguindo o exemplo da URSS e dos estados operários deformados do leste europeu, ou sob o controle da burocracia governante, na tentativa de um arremedo ao que ocorreu através do “modelo” chinês-vietnamita.

Se a restauração do capitalismo na ex-URSS, leste europeu e China reforçaram a ofensiva neoliberal aprofundando o retrocesso da classe trabalhadora e a crise da perspectiva da revolução socialista, o triunfo da restauração capitalista em Cuba significaria, sem nenhuma dúvida, uma derrota de grande magnitude para os trabalhadores, os camponeses e os setores explorados da região, e abriria as portas para uma política mais agressiva do imperialismo em toda a América Latina. A defesa ativa das conquistas da revolução cubana contra o imperialismo e os planos restauracionistas da burocracia, significa nada menos que a luta contra essa perspectiva.

EUA e UE: as duas faces da política imperialista para Cuba

O governo de Raúl Castro esperava que o gesto de libertar os presos inclinasse a balança a favor de levantar algumas restrições na exportação de alimentos e viagens para a ilha, que deve ser discussão do Congresso norte-americano, ou permitisse uma flexibilização da política dura da UE. Porém, nada disso tem ocorrido de imediato, apesar de que seja ainda muito cedo para se avaliar os resultados.

Até o presente momento, a postura dos Estados unidos é de pressionar para que continuem os gestos de “boa vontade” antes de considerar alguma medida que flexibilize o bloqueio.

O governo de Obama tem demonstrado manter em essência o central da política imperialista que combina o embargo econômico através do bloqueio com a exigência de “abertura democrática” como forma de pressão para a restauração do capitalismo, apoiado na comunidade gusana de Miami. Esta é a política histórica dos Estados Unidos depois de que a falida tentativa de invasão na Baía dos Porcos mostrou a inviabilidade de um ataque militar direto.

À sombra de algumas concessões menores e parciais sobre o envio de remessas e viagens de cubanos residentes nos Estados Unidos ã ilha, Obama têm mantido o bloqueio econômico desumano que os EUA aplicam já fazem mais de 50 anos (inclusive ã alimentos e medicamentos) e que já ocasionou prejuízos econômicos calculados em mais de 80 bilhões de dólares ã Cuba.

Esta política de manter a chantagem do bloqueio para exigir mudanças políticas e econômicas ao governo cubano ou, como planeja alguns setores mais duros, provocar uma “mudança do regime”, se inscreve em uma estratégia mais geral da administração democrata de recompor o poderio tradicional do imperialismo norte-americano na América Latina, que se viu debilitado durante os anos da presidência Bush com a derrota do projeto da ALCA e a prioridade que deu os EUA ás guerras no Afeganistão e Iraque.

Esta situação, junto ao aumento de preços das matérias primas que produzem os países da região, principalmente o petróleo, permitiu que alguns governos latino-americanos tentassem obter maior margem de manobra diante de suas negociações com o imperialismo. Este foi o caso de Chávez na Venezuela que avançou com seu projeto da ALBA em alguns países da América Central, região que de conjunto permanecia alinhada com os EUA tanto na política exterior quanto no terreno econômico com o CAFTA (Tratado de Livre Comércio da América Central). E também o governo Lula que vêm tendo atritos com os EUA sobre temas de política exterior, ainda que sem planejar ser uma liderança alternativa nem reverter a posição subordinada do Brasil na política mundial.

Este objetivo de recompor o domínio imperialista na região que historicamente tem sido considerada pelos Estados unidos como seu próprio “quintal” se expressa em uma política militarista norte-americana na Colômbia, a virtual ocupação no Haiti depois do terremoto, as hostilidades contra a Venezuela exercida através de seus agentes no governo colombiano, e se consuma no apoio ao golpe em Honduras.

Diante da intransigência norte-americana, não são poucos os que se apresentam ser uma alternativa favorável a Cuba, como com a política mais “branda” e “negociadora” de alguns países da UE, em particular da Espanha. Estas medidas se tratam de totais falácias. A UE adotou em dezembro de 1996 a chamada posição comum que, é outra forma de chantagem e utilização da pressão econômica para que o regime cubano facilite a “liberalização econômica” e a “abertura democrática”. As tentativas do governo espanhol de Zapatero de que a UE mude a posição comum, respondem aos interesses de capitais espanhóis que possuem importantes negócios em Cuba.

Ainda que divirjam nas táticas, EUA, UE e a Igreja Católica compartilham a estratégia de restaurar o capitalismo em Cuba, voltando ao país a seu status semi-colonial anterior ã revolução de 1959.

A política das burguesias latino-americanas

Diferentemente da década de 1990, os governos latino-americanos, exceto os mais pró-norte-americanos –como o da Colômbia- mantêm boas relações com Cuba e possuem planos de negociar com o regime de Raúl para realizar investimentos benéficos para seus capitais, e ir incorporando a ilha ã estrutura capitalista do continente. Parte desta política foi a proposta surgida na cúpula de Trinidad e Tobago em 2009, rechaçada pelo próprio regime cubano, de readmitir Cuba na OEA.

Seus dois principais sócios comerciais no continente são Venezuela e Brasil. No caso da Venezuela, Chávez vem de fato subsidiando a economia cubana através do preço preferencial de petróleo e pela compra massiva de serviços profissionais (principalmente médicos) que segundo alguns economistas está atraindo ingressos em divisas similares ã atividade turística de Cuba. Em troca, Chávez tem condições de investimento privilegiados em Cuba pela PDVSA tanto em exploração como no refino de petróleo cru.

Lula vem cultivando uma relação estreita com os irmãos Castro que dá o retorno através de importantes negócios e representa uma política de restauração: as empresas brasileiras se convertem nos segundos exportadores de alimentos (atrás dos EUA). Em sua visita em fevereiro de 2010, estes investimentos se ampliaram ao setor hoteleiro e de infra-estrutura (reconstrução do porto Mariel e de moradias), no setor agropecuário, na indústria farmacêutica e na extração de petróleo, um setor estratégico em que a Petrobrás vêm investindo.

Nós revolucionários não nos opomos que o governo cubano mantenha relações econômicas e diplomáticas benéficas com países como Venezuela e Brasil. Porém, a política da burocracia é de alimentar ilusões nos governos “progressistas” latino-americanos e confiar em suas alianças no lugar de se apoiar nos explorados do continente. Inclusive Fidel Castro apresenta o nacionalismo burguês de Chávez e seu suposto “socialismo do sáculo XXI” com empresários, como a herança da revolução cubana.

Na verdade estes governos são “amigos” do regime cubano, porém inimigos da revolução social e representam outra via de restauração capitalista.

A burocracia cubana e o “modelo vietnamita”

Ainda que com um discurso “socialista” e “anti-imperialista”, a burocracia governante reivindica já há anos o chamado “modelo chinês” ou vietnamita, ou seja, um programa de marchar em direção a um processo gradual de restauração capitalista sob a direção do PCC, e já vem tomando medidas que vão nesse sentido. Entretanto, por várias razões parece muito difícil que o regime cubano possa seguir o caminho destes países asiáticos.

Em primeiro lugar, apesar de certo distanciamento com as tradições revolucionárias, gerado pelo domínio da burocracia e reforçado pelos anos de reação política e ideológica logo após do desaparecimento da URSS, em Cuba ainda subsiste certa consciência igualitária e um forte anti-imperialismo, e não por via de uma derrota como foi na China pelo esmagamento do levantamento de Tiananmen em 1989.

Em segundo lugar, diferentemente de China ou Vietnam, ambos admitidos na Organização Mundial do Comércio (OMC), o imperialismo norte-americano mantém uma política de bloqueio econômico, ao que se soma a ameaça da burguesia cubana exilada em Miami, a curtos 140km de Cuba, que ainda reivindica suas propriedades expropriadas pela revolução de 1959.

Estas aspirações da burocracia governante, mostram-se quiméricas quando se leva em conta a diferença de escala entre a economia cubana e a economia chinesa – e inclusive vietnamita, que absorveu uma porção do investimento estrangeiro na década de 1990 e se transformou em uma plataforma exportadora aos países asiáticos.

China se beneficiou de seu papel como provedor de mão de obra barata, atraiu investimentos capitalistas e se tornou uma das principais economias do mundo. Os governos que empreenderam a restauração capitalista nos ex-países do “bloco socialista” da Europa do Leste mostravam como perspectiva a incorporação ã União Européia, a que finalmente foram integrados como pátio traseiro das principais economias, sobretudo da Alemanha, e logo após uns poucos anos de crescimento hoje sofrem as conseqüências da crise capitalista. Inclusive a Rússia onde a restauração capitalista significou uma catástrofe social e uma grande destruição para o país, ainda conserva um status de potência regional e possui o segundo arsenal nuclear do mundo, atrás dos Estados Unidos.

As conseqüências de uma eventual restauração capitalista em Cuba seriam ainda mais catastróficas, já que, para além dos ritmos, seu destino inexorável será retroceder aos patamares de pobreza e marginalização dos países semi-coloniais do Caribe e da América Central, subordinados ao imperialismo norteamericano.

Até onde avançou a burocracia com seu programa de restauração gradual?

A análise concreta da economia cubana mostra que o ritmo de implementação das medidas de abertura econômica aos investimentos capitalistas não foi um processo constante desde o início do chamado “período especial”. Também mostra que, apesar do curso restauracionista da própria burocracia que não faz outra coisa que descompor ainda mais as bases do estado operário deformado, seria um erro pensar que o capitalismo já foi restaurado na ilha e que não fique nenhuma conquista por defender, ou pior ainda, que nunca se tratou de uma economia de transição, como sustentam as teorias coletivistas burocráticas ou capitalistas de estado. Ainda que se tenha legalizado a propriedade mista em alguns setores importantes da economia, ainda predomina a propriedade nacionalizada dos meios de produção, o que entre outras coisas explica que até o momento, não tem sido possível recriar uma classe exploradora local ou restaurar as propriedades dos gusanos de Miami. Esta situação também se dá no setor agrícola, no que a terra ainda se segue mantendo sob propriedade estatal, o que implica que as parcelas entregadas para o usufruto privado não podem ser transferidas nem vendidas, o que ao ser assim, levaria ã concentração e ao surgimento de uma burguesia latifundiária.

Estamos frente a um processo ainda aberto, cujos alcances e retrocessos dependem não só das condições internas da ilha, mas também de elementos da situação e da economia internacional como a política imperialista, o boom das matérias primas e a posterior crise da economia mundial e, sobretudo, da relação de forças mais geral na região.

Desde este ponto de vista, o processo de restauração capitalista em Cuba avançou durante a década de 1990, no marco do auge neoliberal e um endurecimento da política norte-americana sob as presidências de Clinton, com a implementação da chamada lei Helms-Burton. Este processo tornou-se mais lento a partir de 2003 e inclusive reverteram algumas medidas, sem retroceder no central, o que coincidiu com a queda dos governos neoliberais na América Latina produto de uma tendência ã ação direta que recorreu grande parte do continente e foi desviada pela emergência de governos burgueses autodenominados “progressistas”, pela chegada ao poder de Evo Morales na Bolívia e a consolidação do débil nacionalismo burguês de Chávez na Venezuela.

Desde que Raúl sucedeu a seu irmão Fidel, primeiro como presidente a cargo e logo depois eleito em 2008, tem se reafirmado o rumo do regime cubano de avançar de maneira gradual na introdução de medidas capitalistas, anunciando a necessidade de implementar “mudanças estruturais e de conceito” na economia. Os últimos acontecimentos indicam que uma combinação de distintos fatores, no marco da crise da economia mundial, pode precipitar este processo. Entre estes poderiam contar-se: a desaparição de cena de Fidel Castro; a emergência de uma política mais dialoguista por parte do imperialismo norte-americano e dos gusanos de Miami, que assegurou ã velha guarda da burocracia não tomar represálias judiciais pelas expropriações e outros atos realizados no curso da revolução, e que se decidam a investir capital, como o fez a burguesia chinesa refugiada em Taiwan; um papel mais claro da União Européia, em particular do Estado Espanhol, para facilitar esta política negociadora; e por último, ainda que não menos importante, um impacto maior da crise econômica internacional que leve a uma situação de caos econômico.

Nós revolucionários não nos opomos por princípio que um estado operário em circunstâncias difíceis que coloquem em perigo sua própria existência, ou em uma etapa de profunda reação e restauração burguesa, como a que vivemos desde princípios da década de 1980, veja-se obrigado a fazer concessões ao capital, tal como fez, por exemplo, o estado operário russo sob a direção de Lênin durante a NEP. Entretanto, quando estas medidas são realizadas por uma burocracia estatal privilegiada como a do PCC, que elogia o curso restauracionista seguido pelos partidos comunistas chineses e vietnamita, longe de ser medidas de retrocesso transitório para garantir a sobrevivência das bases não capitalistas do estado, corroem os pilares da economia nacionalizada e criam benefícios adicionais para os funcionários do regime associados com os novos negócios, que como no caso dos executivos membros das FAR (Forças Armadas Revolucionárias), formam uma “proto-classe” para transformar-se em capitalistas ante uma mudança nas condições políticas e econômicas. Isto já começa a ver nos casos de corrupção em altas esferas do regime, que funciona como um meio de acumulação primitiva individual em base no roubo, nos privilégios e nos subornos derivados da administração da propriedade estatal.

As reformas procapitalistas do “Período especial” (1989-2003)

Comparado com o resto dos países da América Central e do Caribe ou com as conseqüências nefastas da ofensiva neoliberal na América Latina, que se mantém sob os governos denominados “progressistas”, Cuba segue sendo um exemplo para as massas da região, sobretudo por suas conquistas materiais como a saúde e a educação gratuitas. Em grande medida, estas conquistas se explicam porque, apesar do regime burocrático e das concessões ao capital que vem se realizando, o estado cubano ainda se baseia fundamentalmente em relações sociais não capitalistas.

Entretanto, o prolongado domínio da burocracia tem enterrado de maneira progressiva estas bases. Este processo deu um salto sobretudo nas últimas duas décadas nas que o regime vem tomando medidas mais abertamente procapitalistas.

Durante décadas a economia cubana, baseada no monocultivo da cana de açúcar, foi altamente dependente dos subsídios que recebia da ex-URSS e do comércio benéfico com os países pertencentes ao CAME (Conselho de Ajuda Mútua Econômica) ao que Cuba ingressou em 1972.

Esta dependência ficou ao relento logo da desaparição da União Soviética e o chamado “bloco socialista” entre 1989 e 1991. Com o fim da ajuda soviética e o recrudescimento do bloqueio norte-americano, Cuba sofreu a pior crise econômica de sua história, que alcançou seu ponto máximo em 1993, com uma queda de 35% do PIB. Essa situação crítica se prolongou até o final da década, com um crescimento médio de -1,4%.

No marco desta crise, e do isolamento internacional em que havia ficado Cuba com o reforço da ofensiva neoliberal e da consolidação da restauração capitalista no resto dos ex-estados operários burocratizados, o regime de Fidel Castro colocou em marcha, a princípios dos anos ’90, um pacote de medidas econômicas conhecido como “período especial em tempos de paz”. (Ver Eduardo Molina: “Cuba en La encrucijada”, Estratégia Internacional N ° 20, setembro de 2003).

A reforma da constituição de 1992 legalizou as empresas mistas (associadas com o capital estrangeiro) e a pequena propriedade, debilitou os mecanismos de planificação econômica e praticamente desmantelou o monopólio do comércio exterior.

Enquanto a economia se abria em certas áreas (como o turismo) ao capital estrangeiro, avançou-se na descentralização de grande parte do aparato produtivo, ficando exclusivamente sob a órbita da planificação estatal e por fora do investimento estrangeiro privado os setores da economia não geradores de divisas, a saúde, a educação e as empresas da área da defesa. Esta reforma implicou a liberalização dos controles sobre as empresas privadas e mistas, que passaram a operar praticamente sob sua própria responsabilidade nas importações e exportações.

A planificação econômica esteve praticamente suspendida entre 1990 e 1996, ano em que gradualmente começam a retomar elementos de planificação (Ver Y. Martínez Pérez: “El proceso de planificación empresarial en Cuba”, Universidad de Cienfugos, 2008).

Este curso se aprofundou com a aprovação em 1995 da Lei de Investimentos Estrangeiros que reconhecia os direitos das empresas de repatriar os lucros surgidos da atividade econômica em Cuba e lhes dava garantias contra possíveis expropriações. Durante os primeiros anos do período especial, o grosso dos investimentos estrangeiros, principalmente de origem espanhol e canadense, concentraram-se em diversos setores, sobretudo no turismo e na mineração.

Em agosto de 1993 o governo despenalizou a posse de divisas tanto para a população como para as empresas. Com esta medida se estabeleceu uma dualidade monetária com uma dolarização parcial da economia, sobretudo na venda varejista, contas de poupança e operações das empresas, enquanto os salários, as pensões e as poupanças da maioria da população se mantiveram expressos em pesos cubanos. Desta maneira, o governo buscou dar estabilidade a um setor da economia ligado com o investimento estrangeiro que se percebia como um dos motores da recuperação econômica.

A introdução desta dupla circulação monetária colocou de relevo as profundas diferenças sociais que estavam se gestando entre os que estavam ligados aos setores geradores de divisa, principalmente funcionários do regime, e a maioria da população que não tinha acesso ao dólar (Ver Pavel Vidal Alejandro: “Los salarios, los precios y la dualidad monetaria”, Estudios Económicos Cubanos, 2008).

Em 1997 autorizou-se o estabelecimento de zonas francas dentro das quais as empresas instaladas gozam de condições excepcionais em matéria aduaneira, laboral, migratória, bancária, tributária e de comércio exterior. Isto introduziu enormes pressões para a reestruturação do conjunto da economia para uma inserção cada vez mais dependente e subordinada ao mercado e ã dinâmica do sistema capitalista imperialista.

A partir de 1998 se estendeu o “Aperfeiçoamento empresarial” que aplicavam as empresas da órbita militar ás empresas estatais sob controle das FAR, que desde então foram se incorporando gradualmente ao programa até rodear algo mais de 30% ao final de 2008. Este plano implica uma autonomia relativa das empresas e a gestão em função de critérios de eficiência e rentabilidade, incentivos individuais aos trabalhadores (uma emulação do estacanovismo soviético) e pagamento do salário por produtividade (este último se estendeu ao conjunto da economia).

No setor agrícola, transferiu-se a exploração de uma porção cada vez maior das terras a cooperativas e agricultores individuais que dispõe de maneira privada de ao redor de 20% de sua produção.

Ainda que para evitar o caos social o governo estabeleceu uma cartilha de racionamento de bens mínimos a preços subsidiados, esta alcançava apenas a cubrir o consumo de 15 dias. Neste período se ampliou consideravelmente a brecha entre os funcionários do regime e setores com acesso ao dólar, e a maioria do povo cubano que começou a sofrer a escassez de bens e serviços básicos, como alimentos, transportes e eletricidade, além de ver cair drasticamente suas condições de vida.

Desta maneira, como coloca J. Habel, “a dolarização modificou a hierarquia salarial anterior, bastante igualitária” afetando sobretudo os trabalhadores do setor público, que compreende ao redor de 80% da força de trabalho (“El castrismo depués de Fidel, un ensayo general”, Viento Sur, maio de 2008).

A recentralização da economia

A partir de 2003, a economia cubana voltou a crescer em base ã exportação do níquel, principalmente para a China. Também se beneficiou de sua relação com a ALBA recebendo petróleo da Venezuela a preços subsidiados e aumentando a exportação a esse país de serviços profissionais, sobretudo médicos, que significaram um importante ingresso de divisas. Dessa maneira, a Venezuela e a China se transformaram nos principais sócios comerciais de Cuba, com ao redor de 41% do comércio entre ambos, ultrapassando a Espanha e o Canadá. Por sua vez, a incorporação ã ALBA permitiu compensar o isolamento que impõe a adesão dos países vizinhos da América Central ao CAFTA.

Com a recuperação do crescimento econômico, Fidel lançou a chamada “batalha das idéias”, período durante o qual, segundo o economista Mesa Lago, “recentralizou as decisões econômicas, desdolarizando a economia, criou uma conta única no Banco Central de Cuba (BCC) para depositar todas as divisas e recortou o pequeno setor privado por conta própria (Ver Carmelo Mesa Lago: “La economía cubana en la encrucijada: el legado de Fidel, el debate sobre el cambio y làs opciones de Raúl”, Real Instituto Elcano, 23-04-2008). A quantidade de empresas mistas se reduziu de 358 no ano 2000 a 250 em 2009, e com ela o volume do investimento estrangeiro direto.

Ainda que não tenham sido revertidas as medidas estruturais tomadas durante os anos críticos do período especial, entre elas a participação do capital estrangeiro em áreas estratégicas como a exploração do petróleo ou o níquel, onde opera a multinacional canadense Sherritt, a recentralização da economia e a recuperação de um maior controle estatal, incluindo um certo nível de planificação burocrática e a centralização estatal das divisas, tem impedido nestes anos a generalização das relações capitalistas e a criação de um mercado de trabalho, que é o que está tratando de conseguir Raúl Castro com suas atuais reformas.

No ano 2003 se desdolarizou a economia e o dólar foi substituído pelo CUC (a moeda cubana conversível que se usa para comprar divisas e para adquirir bens de consumo importados em empresas varejistas especiais). Isto permitiu ao estado concentrar as divisas disponíveis e controlar sua designação, o que tem conseqüências tanto no plano interno como nas operações de comércio exterior.

Quanto ã planificação, houve um certo re-estabelecimento de um plano econômico para as empresas 100% cubanas, no qual intervieram o Ministério da Economia e Planificação e o Banco Central. Esta relativa planificação burocrática combina as atribuições da verba estatal com decisões de investimento que passaram dos setores não relacionados com a geração de divisas durante os anos do período especial, a investir em setores de rápida geração de divisas e na substituição de importações, entre outros energia e biotecnologia (Ver “Plan Económico Social 2010, Lineamientos de Presupuesto Del Estado”, apresentado pelo ministro Murillo ao Conselho de Estado e de Ministros). Entretanto, a gestão burocrática da economia, da qual estão excluídos os trabalhadores, é o oposto de uma planificação eficiente, como demonstram os pobres resultados dos planos econômicos, orientando-se para uma planificação a nível empresarial segundo critérios de produtividade e rentabilidade, como se pode observar na extensão do programa de aperfeiçoamento empresarial.

A concentração de divisas implicou, de maneira indireta, uma recentralização da atividade econômica e do comércio exterior, ainda que isto não tenha significado o re-estabelecimento pleno do monopólio do comércio exterior. Em relação com este aspecto, o economista Mesa Lago coloca que a “China rompeu o controle do comércio exterior pelo ministério central e desvalorizou a moeda para fazer suas exportações competitivas, enquanto que o Vietnam liberou a taxa de câmbio e deixou que a moeda flutuasse com resultados similares. Pelo contrário, em 2003 Cuba reverteu a descentralização modesta do comércio exterior dos anos 90 e reconcentrou o poder no Ministério de Comércio Exterior e o Banco Central” (Carmelo Mesa Lago, op. cit.).

Este relativo controle estatal se exerce por meio da designação de divisas por parte de um Comitê constituído ao tal fim, integrado pelo Banco Central e o Ministério de Economia e Planificação, aos distintos ministérios que logo distribuem ás empresas estatais de sua órbita, o que se conhece como Capacidade de Liquidez.

O outro elemento relacionado com o setor externo da economia é que a importação-exportação se faz através de empresas autorizadas (estas são de 3 tipos: empresas estatais que são as importadoras de bens de consumo para a população e para empresas privadas, mistas ou estatais sem licença para importar; empresas estatais que tem autorização para importar insumos para sua atividade; e algumas empresas estrangeiras que tem licença para importar). Além do que, os investidores estrangeiros não podem vender diretamente no mercado e tampouco contratar mão de obra cubana. Os trabalhadores cubanos empregados por empresas estrangeiras são contratados por uma agência nacional de emprego, que logo lhes provê esta mão de obra ás empresas. O negócio da burocracia é que cobra os salários destes trabalhadores em dólares e lhes paga em pesos cubanos (Ver Ley 77 de investimentos estrangeiros).

Um mecanismo similar se exerce sobre os médicos que vão trabalhar no exterior, a quem o estado lhes retém uma parte significativa de seu salário.

Estas medidas de recentralização não tem significado uma melhora nas condições de vida da grande maioria da população. Apesar da proibição da circulação do dólar, segue existindo uma dualidade monetária: o peso cubano desvalorizado, no que recebe seu salário a maioria dos trabalhadores e camponeses, e o CUC, o peso conversível quem tem um valor 24 vezes superior ã moeda nacional e ao que só tem acesso os funcionários do regime e os setores ligados ao turismo os que recebem remessas de seus familiares no exterior.

Isto está gerando uma situação potencialmente explosiva: enquanto o governo ampliou as concessões aos setores que tem acesso ao CUC, liberalizando a compra de bens importados, como DVD ou telefones celulares, e permitindo o uso de complexos hoteleiros reservados ao turismo externo, a maioria da população não pode ter acesso com seus salários aos bens básicos que não estão incluídos na caderneta de racionamento que provê o Estado, cujos preços estão expressados em CUC.

As medidas de Raúl e a crise econômica

O governo de Raúl Castro vem impulsionando uma série de medidas de austeridade, entre elas ligar os salários ã produtividade, subir a idade de aposentadoria (com exceção dos integrantes das FAR) e recortar conquistas históricas, como os restaurantes públicos ou o subsídio aos desempregados, consideradas “irracionais”, tudo isto justificado com um discurso reacionário que busca substituir a idéia de “igualitarismo” que acompanhou a revolução, com o critério do “esforço individual”.

No campo, estas medidas de “eficiência” levaram a ampliar a concessão do usufruto privado da terra a cooperativas e camponeses individuais (que alcança 77% das terras cultivadas) e a outorgar certos incentivos, como subir o preço que paga o Estado pelos produtos agrícolas. Desta maneira, alentando o enriquecimento individual, o governo espera aumentar a produção de bens alimentícios básicos, que Cuba hoje está obrigada a importar.

A medida mais antiga foi a transformação de granjas estatais em unidades cooperativas e nos últimos anos estas medidas se estenderam ao usufruto privado, que segundo alguns estudos chega quase a um milhão de hectares a 100.000 beneficiários. Mas esta contra-reforma agrária ainda é limitada: as concessões não podem superar os 40 hectares por usufrutuário, o usufruto tem um prazo de 10 anos (ainda que prorrogável) e o estado mantêm o controle de sementes, fertilizantes e da comercialização final por meio da empresa nacional de aprovisionamento, ã que os produtores devem entregar 70% da produção a preços fixados pelo governo, ficando só 30% para a comercialização privada (Ver Armando Novoa, citado em “Los câmbios estructurales e institucionales”, Boletín Cuatrimestral del Centro de Estudios de la Economía Cubana, abril de 2010).

Desde a passagem dos furacões em 2008, que arrasaram com grande parte das colheitas e da rede de infra-estrutura na ilha, a burocracia estabeleceu uma série de restrições ã distribuição de alimentos e produtos agropecuários, privilegiando os ramos de exportação, o que reduziu as quotas de consumo da população, aplicando uma política de racionamento. Em contrapartida, o governo foi obrigado a intervir nos mercados de livre formação de preços, para evitar que o desequilíbrio entre a oferta e a demanda leve a uma inflação nos preços. A oferta caiu e os preços ficaram por debaixo dos custos de produção, aprovisionamento e distribuição. O resultado foi que os mercados nos últimos anos estão sofrendo um grande desabastecimento de artigos de primeira necessidade para a população. Ante esta situação, é cada vez maior a pressão a avançar em medidas pró-capitalistas, como a introdução da propriedade privada da terra e uma maior liberalização dos mercados agropecuários, que permita aos produtores buscar melhores preços nos mercados externos.

O sistema da burocracia para a agricultura é uma motivação para a denúncia da “ineficiência estatal”, para demonstrar que o estado não pode gerir o conjunto da economia e que tem que dar uma margem maior ã atividade privada.

A crise econômica internacional que se iniciou com a queda do Lehman Brothers está afetando seriamente a economia da ilha. Segundo as estatísticas oficiais, a economia cresceu só 1,4% em 2009 (comparado com 4,1% em 2008), enquanto que a CEPAL estima que o crescimento foi de 1%. Uma combinação de fatores explicam estes índices, entre eles, a queda de 40% do preço internacional do níquel (a principal exportação de Cuba); a diminuição de 23% das exportações (segundo a ONE o volume do comérico exterior contraiu em 37% em 2009); uma queda de 11,7% no ingresso de divisas pela atividade turística, devido ã recessão mundial; a queda de 2% na produção industrial; o pobre desempenho na safra açucareira (a pior colheita das últimas décadas, caiu de 8 milhões de toneladas em 1990 a só um milhão atualmente), o que impediu se beneficiar da alta do preço do açúcar (dados da ONE e da CEPAL, citados por Carmelo Mesa-Lago em “La crisis global, SUS efectos en Cuba en 2009 y perspectivas para 2010”, janeiro de 2010).

Por sua vez Cuba segue obrigada a importar ao redor de 80% dos alimentos básicos, principalmente de empresas norteamericanas, já que a magnitude dos negócios é a única área onde o bloco não é tão estrito. Entretanto, este acesso a bens norteamericanos é muito prejudicial para Cuba que está obrigada a pagar a vista suas importações.

Ainda que o crescimento reportado durante 2009 coloca Cuba por cima dos índices negativos que registraram a maioria dos países da região nesse ano, a contração brusca da economia teve (e segue tendo) importantes conseqüências. A isto se soma que a assistência que recebe o regime cubano da Venezuela, não só depende dos vai-e-vens do preço do petróleo, senão de que Hugo Chávez se mantenha no poder, já que ao se dar uma mudança política na Venezuela, essa ajuda vital, como antes havia sido os subsídios da União Soviética, desapareceria, o que poderia precipitar o caos econômico e uma situação inclusive mais crítica que a que levou ã implementação do período especial.

A primeira medida drástica que adotou o governo é a redução de 500.000 empregos estatais durante o primeiro trimestre de 2011 e a legalização de formas de emprego privado e atividades por conta própria.

Quanto ã eliminação da dualidade monetária, que figura entre as medidas a tomar pelo governo de Raúl, parece ainda difícil de implementar. Não só existem duas moedas, mas também há diversas taxas de câmbio entre o peso cubano e o CUC.

Enquanto que para a população esta é de 24 pesos cubanos por 1 CUC, para as empresas que operam em pesos não convertíveis, o valor do peso cubano é 1 a 1 com o CUC, e sobre essa base sobredesenvolvida se calculam seus balancetes.

Como reconhecem vários economistas cubanos, a unificação monetária exigiria certas “reformas de mercado”, em primeiro lugar uma desvalorização do tipo de câmbio oficial, com o que “se desinflariam as contas correntes em pesos cubanos das empresas, ou seja, reduziria-se seu poder aquisitivo em termos de divisas” o que inevitavelmente levará a perdas e quebras dado que o tipo de câmbio que expressa a relação com as divisas é de 1=24. (Pavel Vidal Alejandro: “La Dualidad Monetaria y la Política Cambiaria de Cuba”, Estudios Económicos Cubanos, 2009. Ver também Antônio M. Ruiz Cruz: “La dualidad monetaria en Cuba: principales problemas asociados y perspectivas”, Obsevatorio de la Economía Latinoamericana, N° 117, 2009; Pavel Vidal Alejandro: “Redimensionando la dualidad monetaria”; P. Grogg: “Dualidad monetaria sigue em discusión”).

As FAR como vanguarda da restauração capitalista

As Forças Armadas Revolucionárias, a instituição mais sólida e melhor organizada do estado que goza de grande prestígio entre a população, vem cumprindo um papel chave na economia desde a década de 1980. A relevância das FAR na direção empresarial deu um salto durante o período especial e se reforçou com a chegada de Raúl Castro ao governo. Estes militares diretores de empresa, tanto retirados como em atividade, recebem sua formação em empresas e unidades acadêmicas dos grandes centros imperialistas, onde adquiriram critérios capitalistas de rendimento e produtividade. Mantendo sua lealdade ao líder dos irmãos Castro, as FAR se transformaram no principal agente da restauração capitalista.

Desde há ao menos duas décadas, os altos membros do exército vem ocupando postos de direção em uma grande quantidade de empresas ligadas ao mercado mundial.

Segundo os dados oficiais, dirigiram mais de 850 empresas de setores estratégicos da economia, que abarcam desde o açúcar e a agricultura até o turismo e as indústrias básicas, o que lhes confere o controle de ao redor de 65% das divisas que ingressam ao país. Esta administração está organizada em torno ao grupo GAESA (Grupo de Administração Empresarial) e entre seus negócios estão o complexo empresarial turístico Gaviota, a distribuição do gás, da mineração, da aviação e do setor agropecuário. Isto lhes permitiu estabelecer relação estreitas com seus sócios capitalistas estrangeiros e acumular fortunas com os novos artigos de consumo e alimentos importados em tendes especiais ou atenção médica diferenciada, melhores casas, uso de veículos do estado, contas no exterior, entre outros.

Por este papel na economia e no comércio exterior, os altos mandos das FAR e seus membros vinculados a estas atividades estão em uma posição imemorável para alçar-se com a maior envergadura e passar de ser administradores a proprietários dos meios de produção, associados com o capital estrangeiro.

Divisões e corrupção nas filas da burocracia

Esta situação além de gerar mal estar vem dando lugar desde há anos ao florescimento de um mercado e uma economia informal, que funciona com a moeda conversível. A política de “abertura econômica” que vem impulsionando o governo de Raúl ampliou a brecha social e está gerando um descontentamento surdo que se manifesta na apatia operária frente ao trabalho e ã crítica cada vez maior de distintos personagens ligados ao regime, ao mesmo tempo que prosperam setores privilegiados entre as camadas médias da sociedade e da burocracia governante, que prefeririam se liberar do controle estatal.

Isto se expressa em um nível de corrupção sem precedentes entre funcionários do regime, denunciada por alguns intelectuais cubanos, que descrevem a situação nas filas do regime como um “salve-se quem puder”. Como afirmou Esteban Morales, diretor emérito do Centro de Estudios sobre Estados Unidos de la Universidad de La Habana, alguns setores da burocracia se estariam “alavancando financeiramente, para quando a Revolução se caia”, enquanto que outros “podem ter quase tudo preparado para produzir a passagem dos bens estatais a mãos privadas, como teve lugar na antiga URSS”, Morales que foi expulso recentemente do PCC por esta denúncia de corrupção e roubo da propriedade estatal nas altas esferas da burocracia, defende a hipótese de que estes setores, que ocupam o mesmo posto há anos, “podem estar recebendo comissões e abrindo-se contas bancárias em outros países.” (E. Morales Dominguez: “La corrupción ¿la verdadera contrarrevolución?”, UNEAC, 9 de abril de 2010). Esta hipótese se embasa em um dos casos mais recentes de corrupção no Instituto de Aeronáutica Civil de Cuba, que terminou com a destituição de seu diretor, o general Rogelio Acevedo, que pertence ã velha guarda da Sierra Maestra. Posterior a este caso, estourou outro grande escândalo na empresa mista Alimentos Rio Zaza no que estão implicados o empresário chileno Max Marambio, um ex-militante do MIR e guarda de Salvador Allende, e vários funcionários e diretores, acusados de subornos, má administração e desvio de fundos ao exterior.

O agravamento dos problemas econômicos, o surgimento de camadas privilegiadas com interesses próprios, a emergência de uma oposição que defender ir a um regime de democracia burguesa, entre outros fatores, abriram uma crise no regime que, ainda que contida, expressa-se no interior do PCC. Raúl Castro segue postergando a realização do Congresso do PCC, que devia ser feito em 2002 (o último foi o V Congresso realizado em 1997) no que se devia discutir o rumo a seguir, por temor a que estale publicamente a luta surda de camarilhas que já ninguém pode negar. Estes conflitos internos saíram a luz com os expurgos realizados no começo de 2009, que culminou com a destituição de Carlos Lage e Felipe Pérez Roque, duas figuras chave da chamada “nova geração” ligadas a Fidel Castro, acusados de haverem tido uma “atitude indigna” durante seu desempenho em postos estatais (acusados depois de laços com os serviços secretos espanhóis, um cargo não demonstrado).

Esta situação tem estabelecido uma “dupla moral” na que o governo ataca em seu discurso aos trabalhadores “que vivem do estado” e busca melhorar com medidas materiais da burocracia estatal e tolera a corrupção e o enriquecimento dos funcionários do regime e dos membros das FAR e as manobras de crescimento abastado de camadas médias, que buscam a maneira de aumentar seus ingresso no mercado negro e na economia informal. Esta dupla moral, que se inicia no seio mesmo da burocracia e se estende ã sociedade, corrói as reservas subjetivas para enfrentar os planos restauracionistas.

A capitulação “pela esquerda” ã restauração capitalista em Cuba

O destino da revolução cubana divide águas na esquerda latino-americana e mundial. Por um lado, os setores populistas e os débeis partidos comunistas do continente, confundindo a defesa das conquistas da revolução com a defesa incondicional da burocracia governante, mantém uma posição de apoio acrítico ao regime cubano e justificam todas as medidas que toma o governo, sem se quer assumir que a própria burocracia, em particular as FAR, constitui a principal força interna da restauração capitalista. Neste sentido, estes “amigos de Cuba” jogam um rol similar aos que Trotsky chamava os “amigos da URSS”.

Esta esquerda populista apela ao velho argumento de que qualquer crítica ao governo de Raúl “faz o jogo ã direita e ao imperialismo” para obturar toda discussão séria sobre o futuro da revolução cubana, tanto no interior da ilha, onde são partidários do regime do partido único, como no resto do continente.

Ainda que estejamos dispostos ã unidade de ação contra o imperialismo e em defesa das conquistas da revolução com todo aquele que diga defendê-la, estas correntes estão repetindo a mesma política nefasta que as levaram a sustentar durante décadas ã burocracia stalinista da URSS, a ex-RDA e Europa do Leste como os “representantes do socialismo”, os mesmos que não duvidaram em se transformar em capitalistas e “novos ricos” por meio do roubo e o saque da propriedade pública.

No extremo oposto, situam-se as correntes social-democratas e os intelectuais liberais que considera que o principal problema que enfrenta o povo cubano não é o imperialismo e o perigo da restauração capitalista, senão as necessidades da mudança do regime baseadas em liberdades democráticas formais, e em conseqüência fazem eco ã campanha demagógica pelos “direitos humanos” e pela “democracia” lançada pelo imperialismo.

No encalço desta posição se situam algumas organizações que se reivindicam trotskistas, como a Liga Internacional de los Trabajadores (LIT) e sua principal organização, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) do Brasil, que coloca que em Cuba o eixo é o “combate frontal contra a ditadura” e reivindica abertamente liberdades democráticas para todas as correntes, inclusive as burguesas. O Partido Obrero, da Argentina, ante a crise aberta pela morte de Tamayo, cedeu a esta linha “democratizante”, exigindo ao governo cubano a abertura dos centros de detenção a uma “inspeção humanitária internacional”, nada menos que uma das desculpas que são utilizadas pelo imperialismo para encobrir sua ingerência (Partido Obrero 1120, 18-3-10), ainda que depois tenha abandonado esta reivindicação sem dar explicações.

A LIT sustenta não somente que em Cuba restaurou-se o capitalismo com as reformas institucionais introduzidas a começos da década de 1990, e que não restam conquistas a defender, senão que inclusive isto se levou a cabo sem que a burguesia exilada em Miami fosse informada e sem que surgisse uma nova classe exploradora nacional, já que Cuba ter-se-ia transformado em uma semi-colônia espanhola e canadense. Coerente com esta teoria disparatada, a LIT define o regime cubano como uma “ditadura capitalista” ou “burguesa” do PCC (sic), para o qual haveria de ter a mesma política que se teria quando se tratasse, por exemplo, da ditadura de Videla ou outras ditaduras instaladas no Cone Sul durante a década de 1970 (ver “Frente a la muerte de Orlando Zapata Tamayo y las libertades en Cuba”, 18-03-2010, disponível em www.litci.org), e convoca sua derrocada mediante os métodos da “revolução democrática”, ou seja, com um programa mínimo de liberdades democráticas gerais.

Esta política situa a LIT nua frente única com o governo de Obama, com os gusanos de Miami, com a Igreja, e com os “dissidentes” internos, e significa uma capitulação escandalosa a uma das vias prováveis da restauração capitalista: a contra-revolução democrática.

Mas para a LIT isto já forma parte de sua tradição política. Durante os processos anti-burocráticos de 1989 que culminaram com a queda dos regimes stalinistas, a LIT sustentava que havia triunfado uma primeira etapa democrática, ã qual chamava “fevereiro”, caracterizada por uma frente única de todos os que estavam contra a burocracia, independentemente de se seu programa era pró-capitalista, ã qual supostamente se lhe seguiria o “outubro”, uma segunda etapa da revolução operária. Esta teoria etapista mostrou-se inteiramente falsa. Sem um programa de revolução política, os levantes de 1989 terminaram em uma grande derrota histórica e culminaram na restauração do capitalismo. Mas a LIT não se rendeu ás evidências e reformulou sua teoria, apenas para manter o essencial: agora afirma que a restauração capitalista já se havia consumado na ex-URSS e 1985 e que as revoluções de 1989 foram “anti-capitalistas” e triunfaram porque frearam os planos de terapia de choque da restauração (sic!). Desta maneira, segue sem admitir a profunda crise que significou a restauração capitalista. Agora, repete isto para Cuba e justifica sua política claudicante e liquidacionista das conquistas que ainda se conservam da revolução com o argumento de que o capitalismo já está restaurado, e do que se trata agora é de derrubar a “ditadura capitalista” do PCC, inclusive com os gusanos e com a “dissidência” financiada por Washington.

Contra essas duas posições que levam a apoiar por distintas vias os diferentes agentes da restauração capitalista, os marxistas revolucionários lutamos por uma revolução política que crie as bases de um estado operário revolucionário, e convocamos os trabalhadores e as massas populares da região a lutar contra o bloqueio imperialista e a defender com este programa as conquistas da revolução cubana.

Um programa para defender e estender as conquistas da revolução

Se a princípios da década de 1990 a restauração do capitalismo na ex-URSS, na Europa do Leste e na China, reforçou a ofensiva neoliberal aprofundando o retrocesso na capacidade de organização e de luta da classe operária, e a crise de perspectiva da revolução social, o triunfo da restauração capitalista em Cuba significaria sem nenhuma dúvida uma derrota de grande magnitude para os trabalhadores, para os camponeses e os setores explorados da região, e abriria as portas a uma política mais agressiva do imperialismo em toda a América Latina.

A única forma de evitar esta perspectiva é lutar por uma revolução política encabeçada pelos trabalhadores, em aliança com os camponeses e setores populares que, partindo da defesa das conquistas da revolução, derrote o bloqueio imperialista e ponha fim ã burocracia e a seus privilégios. Esta revolução está intimamente relacionada com as perspectivas da revolução social em todo o continente.

Os revolucionários não podemos deixar que o imperialismo, os gusanos e a dissidência pró-capitalista, como as Damas de Branco, usurpem demagogicamente as bandeiras dos direitos humanos e da situação dos “presos políticos” para seus fins reacionários. Contra os abusos e acusações arbitrárias do regime castrista, nos pronunciamos pela conformação de comissões operárias e camponesas independentes e pela liberdade daqueles presos políticos que não estejam vinculados com atos de terrorismo ou apadrinhados pela CIA, sem nenhum tipo de solidariedade com suas posições políticas. Ao mesmo tempo nos pronunciamos pela liberdade imediata dos cinco cubanos presos nos Estados Unidos, que o imperialismo usa como reféns e também para a sua chantagem.

O regime de partido único implica que não pode existir outra organização política legal além do Partido Comunista, nem organizações sindicais ou sociais que não estejam em consonância com o aparato partidário. Desta forma se proíbe qualquer forma de organização independente dos trabalhadores, enquanto que abre o caminho para que se organize a Igreja Católica, que é a alavanca da restauração capitalista, um papel que já cumpriu com afinco na Polônia nos anos ’80, em que depois de contribuir durante décadas com o regime burocrático a manter as condições de opressão sobre os trabalhadores, foi um dos pilares da restauração.

A direção oficial da central sindical, a CTC (Central de los Trabajadores de Cuba), é a encarregada de que os trabalhadores aceitem as condições impostas pela burocracia. Inclusive chegou ao cúmulo de ser a encarregada de anunciar o plano de redução de postos no quadro do funcionalismo estatal, em um comunicado público, e que reproduz os conceitos hostis do regime e relação aos trabalhadores e ã tradição igualitária que acompanhou a revolução cubana.

Nós revolucionários lutamos pelo pleno direito de reunião, expressão e organização sindical dos trabalhadores cubanos, imprescindível para enfrentar este ataque ás condições de vida e de emprego. A experiência do Solidaridad na Polônia em 1980-81 mostrou que os sindicatos podem cumprir um papel chave na organização da luta da classe operária para enfrentar as medidas da burocracia governante, mas que também podem ter uma direção partidária da restauração capitalista, ainda que seu programa se apresente sob a forma da auto-gestão operária como alternativa ã planificação burocrática.

Inclusive no interior do PCC surgiram setores críticos ã burocracia, que vêem como saída a auto-gestão empresarial e a introdução de certas medidas de mercado como a correção dos problemas econômicos, recriando em certo sentido um programa similar ao da perestroika russa.

Não obstante, este programa autogestionário, em lugar de democratizar as relações de produção, arruína os mecanismos de planificação e alenta o desenvolvimento da competição e das tendências capitalistas de acumulação por parte dos diretores e gerentes das empresas, em detrimento da organização da economia de conjunto, o que finalmente longe de facilitar o controle dos trabalhadores sobre a produção, termina favorecendo os setores restauracionistas da burocracia.

Por isso é necessário lutar nos sindicatos e nos organismos de auto-determinação operária e popular, por um programa que parta da defesa da nacionalização e centralização dos principais meios de produção como condição para enfrentar a restauração do capitalismo e planificar democraticamente a economia.

Contra o regime burocrático de partido único e contra o programa de estabelecer uma democracia burguesa parlamentar, lutamos por pôr abaixo o regime burocrático e estabelecer um estado operário revolucionário baseado em conselhos de trabalhadores, soldados e camponeses, e pela plena legalidade dos partidos que defendem as conquistas da revolução e que se reivindicam anti-capitalistas.

A primeira tarefa desses conselhos de operários, camponeses e de soldados, apoiados nas milícias populares, é revisar exaustivamente as reformas pró-capitalistas adotadas durante o “período especial” e o governo de Raúl Castro, e tomar as medidas necessárias em benefício dos trabalhadores, dos camponeses e das massas populares cubanas, estabelecendo uma planificação democrática da economia.

Para isso é indispensável o controle operário da produção e das empresas, hoje nas mãos da burocracia e dos altos comandantes das FAR; terminar com os privilégios de todos os funcionários estatais e de toda a burocracia, permitindo assim um aumento geral dos salários operários que, junto ã eliminação da dualidade monetária, diminua as desigualdades sociais; e recuperar totalmente o monopólio do comércio exterior, seriamente solapado nas últimas décadas, para contrapor as fortes pressões do mercado mundial capitalista.

Para levar a cabo esta tarefa é necessária a construção de um partido operário revolucionário internacionalista, ou seja, trotskista, que enfrente todas as falsas opções que se apresentam ao proletariado cubano tanto desde o imperialismo como da própria burocracia governante.

O Partido Comunista Cubano confia nas negociações e nos bons ofícios dos “governos amigos”, como o governo capitalista de Lula ou o de Chávez, e aposta em que o governo de Obama termine franqueando um canal de diálogo para negociar o levantamento do bloqueio em troca da introdução gradual de “reformas” pró-capitalistas. Pronunciamo-nos contrariamente a toda negociação ou diálogo com os gusanos e com o imperialismo. Frente a esta política que levará ã derrota dizemos que os aliados do povo em sua luta contra o imperialismo e o bloqueio são os trabalhadores e camponeses da América Latina e não as burguesias da região, sócias menores do imperialismo. Chamamos as massas exploradas e oprimidas da América Latina e de todo o mundo a expressar sua solidariedade ativa com o povo cubano contra o imperialismo e as intenções de restauração capitalista, para que Cuba volte a ser uma inspiração de luta para todo o continente e se transforme em um motor do combate pela revolução socialista internacional.


Anexo

Uma vez mais sobre o caráter da revolução cubana

A revolução de 1959 despertou o entusiasmo e a simpatia dos trabalhadores, dos camponeses, dos jovens e dos oprimidos da América Latina e do mundo. Significou a conquista do primeiro estado operário do continente a escassos quilômetros do imperialismo norte-americano.

Após a derrota da rebelião operária da década de 1930 e da política colaboracionista com a ditadura do partido stalinista, a direção política da luta contra a ditadura de Fulgêncio Batista, iniciada com a tomada falida do quartel Moncada, foi hegemonizada pelo M26 e pela guerrilha, cujo programa era o de uma “revolução democrática” e a conciliação com a burguesia, e não o estabelecimento de um estado operário baseado no auto-governo das massas através de órgãos de tipo soviético.

Isso explica que somente depois da frustrada invasão da Baía dos Porcos, armada pela CIA, em 1961, Fidel Castro tenha declarado Cuba um “estado socialista”, e que o estado operário cubano tenha nascido burocraticamente deformado, com um regime baseado não em órgãos de democracia operária senão no aparato do Exército Rebelde e do M26, e logo do Partido Comunista Cubano.

No início da década de 1960, logo após um prolongado processo de lutas internas e expurgos de dirigentes oriundos do velho PSP e do Movimento 26 de Julho, Fidel Castro consolidou sua hegemonia dentro do partido que em 1965 adotará o nome de Partido Comunista. Desde então, o PCC monopolizou o domínio do estado, estabelecendo uma ditadura bonapartista, um regime de partido único que proibiu toda organização que escapasse ao seu controle, fosse sindical, social ou política, e desenvolveu uma estrita vigilà¢ncia ideológica e política sobre toda a população, por meio dos CDR (Comitês de Defesa da Revolução), tornados órgãos tutelares a serviço do regime e aparatos de segurança estatais.

A burocracia governante foi-se consolidando como uma camada com privilégios materiais, surgidos do controle do aparato de estado.

Logo após algumas diferenças iniciais, sobretudo após a crise dos mísseis, Fidel Castro alinhou-se completamente ã política exterior da União Soviética. Cuba estabeleceu uma relação de dependência econômica com a ex-URSS que, se bem lhe permitisse sustentar-se e resistir ao bloqueio e ã política norte-americana que buscava isolá-la da América Latina, reforçou uma estrutura produtiva baseada na monocultura de cana de açúcar.

O regime cubano acabou copiando o modelo de partido único da burocracia stalinista soviética e adotando sua estratégia de “socialismo em um só país”.

A subordinação do regime cubano a Moscou se fortaleceu com a morte de Che Guevara e incluiu o apoio de Fidel ã entrada dos tanques russos que reprimiram a ferro e fogo a “Primavera de Praga” em 1968 ou o golpe ao Solidaridad na Polônia em 1981.

Na América Latina, o seguidismo ã política da URSS que impulsionava a política da “coexistência pacífica” e da conciliação de classes com a burguesia, significou, por exemplo, aderir ã chamada “via pacífica ao socialismo”, que levou ã derrota o processo revolucionário no Chile; ou apoiar o processo contra-revolucionário de “pacificação” ianque na América Central nos anos ’80, através do qual se liquidou o processo revolucionário nessa região. Desta maneira, ainda que a revolução cubana despertasse e desperte uma enorme simpatia nas massas exploradas e oprimidas do continente e seja um exemplo para toda a região, o PCC nunca teve a política de transformar Cuba no motor da revolução socialista na América Latina.

O debate econômico e a política de Guevara

Nos primeiros anos da revolução, a subordinação com respeito ã burocracia stalinista da União Soviética foi questionada parcialmente por Che Guevara ainda sendo parte da direção do M26 (e logo do PCC) e Ministro da Indústria do governo cubano. Estas diferenças se expressaram no chamado “grande debate econômico” de 1963-64 (do qual participou inclusive Ernest Mandel), no qual se opôs ã orientação conhecida como “cálculo econômico” baseada nos fundamentos da reforma Liberman na União Soviética, que buscava reintroduzir métodos de produção capitalista, como o auto-financiamento das empresas estatais, a competição entre unidades produtivas e a quebra, para aumentar a produtividade da economia. Contra esta orientação, encabeçada pela ala mais abertamente pró-russa, Che defendeu a centralização e a planificação da economia.

Ademais, sustentou avançar paulatinamente na industrialização do país, redesignando os recursos provenientes das exportações do açúcar, para dessa maneira superar a histórica condição dependente da economia cubana baseada na monocultura de açúcar, enquanto que a ala stalinista, que no debate teórico teve seu maior expoente no economista francês Charles Bettelheim, impulsionava a situação de Cuba como mero provedor de açúcar ao bloco socialista conformado pela URSS e pelos estados do Leste europeu, no marco de uma suposta “divisão socialista internacional do trabalho”.

No plano político, Guevara opôs-se a sustentar a linha da “coexistência pacífica” com o imperialismo, impulsionada tanto pela burocracia da União Soviética como por Mao Tse Tung, e ã estratégia de conciliação de classes, sustentada pelos partidos comunistas a nível internacional, que levava ã subordinação da classe operária ás decadentes burguesias nacionais.

Também denunciou os privilégios que haviam começado a acumular os funcionários do regime, aos quais acusou de contra-revolucionários, e a formação de uma burocracia partidária e estatal.

Finalmente, em 1965 Guevara renunciou a todos os seus cargos e partiu de Cuba para levar adiante sua política de extensão internacional da revolução baseada na ação de guerrilhas e de exércitos populares, primeiro no Congo e logo na Bolívia, onde foi executado pelas tropas do exército local e pelos Rangers norte-americanos.

Contra a teoria da revolução por etapas e a colaboração com a burguesia nacional, Guevara colocou corretamente a alternativa, “revolução socialista ou caricatura de revolução”, o que o aproximava de uma estratégia conseqüente de revolução socialista internacional. Mas apesar de suas críticas, não foi alternativa ao regime de partido único do PCC porque seu programa não era desenvolver a democracia operária baseada em conselhos de operários, camponeses e soldados.

Che tinha uma concepção estratégica guerrilheira e foquista da revolução, cujo correlato era a construção de partidos-exércitos com base no campesinato e não na classe operária. Seu “anti-imperialismo conseqüente”, expresso no seu chamado de “criar dois, três, muitos Vietnam” não considerava como aspecto estratégico a aliança com os grandes batalhões do proletariado nos países avançados. A intenção falida na Bolívia revelou os limites de sua estratégia. Pouco depois de sua morte, os ascensos operários que abarcaram os centros imperialistas, os estados operários burocratizados e os países semi-coloniais, mostraram que sua estratégia guerrilheira e a suposição de que a revolução “ia do campo ã cidade” era equivocada.

A crise do coletivismo burocrático, o capitalismo de estado e a teoria do estado “nem operário nem burguês”

Frente a degeneração stalinista da União Soviética, surgiram principalmente duas correntes – o coletivismo burocrático e o capitalismo de Estado – que propuseram definições alternativas ã definição de Trotsky da URSS como um estado operário degenerado, na que nos baseamos os marxistas revolucionários para considerar a Cuba um estado operário deformado.

O coletivismo burocrático afirmava que a burocracia stalinista havia transformado em uma nova classe exploradora, inclusive mais eficaz que a própria burguesia, ainda que não possuía os meios de produção senão só os administrava por sua posição no controle estatal.

O capitalismo de Estado, cujo principal referente é o SWP britânico, sustentava que o capitalismo já se havia restaurado na União Soviética em 1928 e que a burocracia era garantidora da acumulação capitalista. Essa definição de caráter de classe do Estado soviético levou a estas correntes a adotar uma postura anti-defensista da União Soviética na Segunda Guerra Mundial, enquanto que programaticamente haviam abandonado a defesa da propriedade nacionalizada como base de um programa de revolução política para derrotar ã burocracia.

O colapso dos regimes stalinistas de 1989-1991 desnudou que ambas teorias eram absolutamente falsas. A transformação de setores da burocracia em capitalistas, a partir do rouba e do saque da propriedade pública, demonstrou contra a concepção coletivista burocrática, que a burocracia não era uma nova classe social, senão uma camada diferenciada cujos privilégios surgiam da administração do estado e que seu programa era transformar-se em proprietários dos meios de produção.

Por sua parte, os partidários do capitalismo de Estado se viram na difícil situação de ter que justificar teórica e politicamente que a restauração do capitalismo na ex-URSS, Europa do Leste e China não produziu nenhuma mudança histórica nem foi uma derrota de magnitude, porque esses estados já eram capitalistas e só sofreram uma mudança de “modelo” de um capitalismo estatal a um capitalismo privado.

Esta corrente se demonstrou completamente estéril e foi incampaz de defender que havia uma alternativa para enfrentar ã burocracia restauracionista, ao se negar desde a década de 1930 a levantar um programa de revolução política.

Apesar de que estas teorias alternativas se demonstraram equivocadas e levaram a claudicar desde o ponto de vista programático aos planos de restauração capitalista, hoje o Novo MAS argentino, revisando tardiamente a concepção “objetivista” de Nahuel Moreno, adotou uma teoria subjetivista que o levou a postular novamente a existência de Estados “burocráticos”, sem nenhum conteúdo de classe definido, surgidos de revoluções “anti-imperialistas” e “anticapitalistas” que ao não haver sido dirigidas por partidos operários revolucionários nem haver levado ao desenvolvido de órgãos de democracia operária, ainda que expropriaram ã burguesia, não configuraram estados operários deformados. Para o Novo MAS, já não as direções pequeno burguesas e/ou stalinistas nacionais, senão as mesmas revolução do pós-guerra e os estados surgidos delas baseados na expropriação e na liquidação dos capitalistas, de nenhuma maneira abriam a possibilidade da transição ao socialismo, ainda que estranhamente os considera formações sociais “progressivas”.

No caso de Cuba, o Nuevo MAS, tomando alguns conceitos de S. Farber, convida uma curiosa teoria na que a direção do Movimento 26 de Julho e da guerrilha não tinha nenhum caráter de classe e que em última instância, a expropriação da burguesia foi produto das características de “caudilho populista” do Fidel Castro.

O Nuevo MAS se esqueceu que o Movimento 26 de Julho, como ala esquerda do nacionalismo pequeno burguês radical da Juventude Ortodoxa, expressava a estendida radicalização das camadas médias da sociedade, que ao ver obturado todo espaço legal de participação eleitoral, voltaram-se à luta armada contra a ditadura de Batista. Isto se expressava na existência de distintas organizações armadas surgidas essencialmente do movimento estudantil e as classes médias urbanas, ás que logo se incorporaram setores camponeses. Enquanto que a classe operária, que havia sofrido uma importante derrota no começo da década de 1930, seguia dirigida majoritariamente pelo stalinista Partido Socialista Popular que colaboraram com a ditadura.

Ainda que já em 1955 os trabalhadores concentrados no setor açucareiro protagonizaram uma importante greve que tomou um caráter político e ao final de 1958, os cinco dias de greve permitem terminar de deslocar o estado burguês e o ingresso triunfal das colunas guerrilheiras em 1 de janeiro de 1959, a classe operária cubana nunca jogou um papel hegemônico na revolução dirigida por um partido- exército pequeno burguês, com um programa limitado de reforma agrária e recuperação da democracia.

Enquanto que para o Novo MAS, baseado em considerações sociológicas abstratas, a revolução cubana viria a confirmar uma teoria de “revolução qualquer” que termina gerando um estado “burocrático” sem nenhum conteúdo social preciso, para os marxistas não fez mais que confirmar a mecânica da revolução permanente: efetivamente, o programa pequeno burguês nacionalista radical do Movimento 26 de Julho se demonstrou completamente utópico e em pouco tempo, com a pressão imperialista e de um movimento de massas alentado pelo triunfo obtido, viu-se obrigado a expropriar o capital norteamericano, aos latifundiários e ã burguesia local, e a estabelecer o monopólio do comércio exterior, ou seja, a estabelecer uma economia de transição ainda que burocraticamente planificada.

Em sua concepção subjetivista, o Novo MAS é incapaz de reconhecer que a liquidação das classes exploradoras e a nacionalização dos meios de produção, ainda que em si mesmos não signifiquem o socialismo, são sua condição necessária. Por isso é partidário de uma “nova revolução” em lugar de levantar um programa conseqüente de revolução política para a ilha.

 

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A Fração Trotskista-Quarta Internacional está conformada pelo PTS (Partido de los Trabajadores Socialistas) da Argentina, o MTS (Movimiento de Trabajadores Socialistas) do México, a LOR-CI (Liga Obrera Revolucionaria por la Cuarta Internacional) da Bolívia, o MRT (Movimento Revolucionário de Trabalhadores) do Brasil, o PTR-CcC (Partido de Trabajadores Revolucionarios) do Chile, a LTS (Liga de Trabajadores por el Socialismo) da Venezuela, a LRS (Liga de la Revolución Socialista) da Costa Rica, Clase Contra Clase do Estado Espanhol, Grupo RIO, da Alemanha, militantes da FT no Uruguai e Militantes da FT na CCR/Plataforma 3 do NPA da França.

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