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Islà político, antiimperialismo e marxismo
por : Claudia Cinatti

31 Jul 2007 |

"Assim, a crítica dos céus se transforma na crítica da terra, a crítica da religião na crítica da lei, e a crítica da teologia na crítica da política"

Karl Marx, Introdução ã Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

Fundamentalismos e "choque de civilizações"

Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, o governo de Bush agitou o fantasma do "fundamentalismo islà¢mico" como a nova ameaça contra o "mundo livre" em geral e os valores norte-americanos em particular, e que viria substituir o "império do mal" soviético. Com esse discurso, buscava justificar a "guerra contra o terrorismo", uma ofensiva política e militar cujo objetivo era recompor a hegemonia norte-americana começando por "redesenhar" o mapa do Oriente Médio.

Essa retórica colonialista fazia de cada muçulmano um "terrorista em potencial". Bush popularizou o termo "islamofascismo" com o objetivo de definir o amplo espectro do islamismo militante como os sucessores dos "totalitarismos" do século XX. Como resultado dessa "islamofobia", aumentou consideravelmente a discriminação e o racismo contra as comunidades árabes e muçulmanas nos países centrais.

Antes de tudo, cabe esclarecer que o termo "fundamentalista" é alheio ao mundo muçulmano. Sua origem se remonta ã corrente de teólogos norte-americanos do início do século XX cujos artigos foram reunidos num livro, conhecido como The Fundamentals, (do mesmo modo o termo "integrismo" usado na França para referir-se ao islamismo radical se refere a um movimento similar dentro da Igreja Católica) que se centravam na crítica ao liberalismo político e aos protestantes, pretendendo resgatar a letra da Bíblia [1]. Durante a Guerra Fria, este "fundamentalismo" devino a corrente de expressão ideológica dos setores mais reacionários da política norte-americana, caracterizada por um anticomunismo raivoso.

A administração Bush criou um monstro ã medida de sua política guerreirista, uma força que vinha de um mundo ignorado pela maioria dos "ocidentais", recorrendo ã pseudo-tese do "choque de civilizações", fabricada no começo da década de 1990 por Bernard Lewis, historiador britânico devenido gurú dos neoconservadores, e popularizada por Samuel Huntington.

Não requer muito esforço intelectual demonstrar que a argumentação de Lewis é absolutamente ideológica e interessada. Um de seus objetivos é demonstrar que o profundo antinorteamericanismo que caracteriza as sociedades muçulmanas não responde ã política imperialista e proisraelita dos Estados Unidos, nem a sustenta em relação a governos árabes despóticos e ditatoriais, mas que constitui uma reação contra uma humilhação ancestral que leva a rechaçar a civilização ocidental como tal, não o que faz mas sim o que é, e os princípios e valores que pratica e profetisa", segundo essas definições, Lewis conclui que "estamos enfrentando um estado de ânimo e um movimento que transcende de longe o nível das políticas e dos governos que as levam adiante. Isso não é nem mais nem menos que um choque de civilizações - a reação provavelmente irracional mas seguramente histórica de um rival ancestral de nossa herança judaico-cristã, nosso presente secular, e a expansão a todo o mundo de ambos" [2].

Esta manobra pseudo-científica foi exposta, entre outros, por Edward Said em seu livro Orientalismo, no qual discute como esta "disciplina" dos expertos ocidentais no mundo muçulmano reproduz os prejuízos coloniais e, freqüentemente, está a serviço dos interesses das distintas potências que sucessivamente ocuparam parte do Oriente Médio [3]. Isso é mais que evidente desde o momento em que nem Lewis nem nenhum "orientalista" considera que o sionismo forma parte do espectro messiânico e religioso, justificando não só a existência mas também a política terrorista do estado de Israel, cujas bases são absolutamente confissionais e racistas.

Em seu famoso artigo "The Clash of Civilizations?", Huntington descreve nos mesmos termos de "identidade cultural" os inimigos dos Estados Unidos logo após o colapso da União Soviética. Huntington reconhece "sete, talvez oito" civilizações atual-ocidentais, confuciana, japonesa, islà¢mica, hindu, eslava-ortodoxa, latino-americana e "possivelmente uma civilização africana" (sic). Não por acaso na "civilização ocidental" estão agrupados os principais aliados dos Estados Unidos: Europa ocidental e o Estado de Israel. A hipótese de Huntington é que "a fonte fundamental de conflitos neste novo mundo não será ideológica ou econômica. As grandes divisões da humanidade e a fonte dominante de conflito será cultural. (...) O choque de civilizações será a linha de batalha do futuro". Quando expõe por completo suas idéias colonialistas, chega ã conclusão que todas as "civilizações" se opõem parcialmente ao ocidente, e há duas que são verdadeiramente antagônicas em relação a este: a confuciana, quer dizer Chinesa, e a islà¢mica. Frente a esse cenário, a recomendação de Huntington para os governos norte-americanos para os "conflitos culturais" que estão por vir é tratar de manter a hegemonia dentro do ocidente e em civilizações como a América Latina, conter a Rússia e o Japão, manter a superioridade militar e explorar os conflitos potenciais entre os estados islà¢micos e confucianos. Para alcançar esses fins "civilizatórios", será preciso que "o ocidente mantenha o poder econômico e militar necessário para proteger seus interesses em relação a essas civilizações" [4]. Qualquer semelhança com os objetivos do "novo século americano" e os fundamentos neoconservadores para a aventura guerreirista no Iraque não é pura coincidência, é a colocação na prática de uma estratégia que um setor da elite norte-americana vinha planejando muito antes dos atentados do 11 de setembro e de que o "mal" tomara o rosto de Osama bin Laden.

Mas essa política está fracassando. O Iraque pós-Hussein que estava destinado a ser um "modelo" para a "democratização" do mundo árabe e muçulmano, se transformou num inferno para as tropas de ocupação, debilitando qualitativamente o governo de Bush. A "civilização" ocidental mostrou mais uma vez sua barbárie nas prisões de Abu Ghraib e Guantânamo, nas torturas e assassinatos, nas centenas de milhares de civis mortos no Afeganistão e no Iraque por "bombas inteligentes", como antes havia feito jogando a bomba atômica ou financiando ditaduras genocidas.

Política e religião no século XXI

Uma década e meia atrás o investigador francês G. Kepel publicava, com o sugestivo título A revanche de Deus, um estudo sobre o retorno do uso político da religião desde meados dos ’70. Segundo a sua tese, esse fenômeno abarca o catolicismo, o cristianismo, o judaísmo e o islamismo.

Longe da versão tramada nas usinas ideológicas do Departamento de Estado norte-americano, a invocação de valores religiosos como justificativa da política dos últimos 30 anos não é exclusiva do Oriente Médio nem do mundo muçulmano, mas tem sim os Estados Unidos como um dos seus precursores. O ponto de inflexão talvez seja a ascensão ã presidência em 1980 de Ronald Reagan com o apoio de uma massa de eleitores evangélicos ou fundamentalistas, seguidores das consignas de organismos político-religiosos como a Maioria Moral, criado em 1979, que se propõe fazer de um país em crise, debilitado por uma inflação de dois dígitos e humilhado pelo seqüestro de seu “staff” diplomático em Teherán, uma nova Jerusalém [5].

Do mesmo modo, a Igreja Católica encontrava no cardeal polaco Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, um "mensageiro" da propaganda pró-capitalista em países da Europa Oriental como Polônia, ã queda do muro de Berlim. E em Israel, um estado racista e religioso, ressurgiam correntes sionistas confessionais ligadas ã ocupação dos territórios sob a forma de expansão colonial de assentamentos que buscavam restabelecer a "Grande Israel" que segundo a Bíblia, Deus prometeu aos judeus como "povo eleito".

Essa instrumentação política da religião - independentemente de qual se esteja tratando - tradicionalmente foi uma estratégia de setores das classes dominantes para manter submetidas as populações: Arábia Saudita, Israel em seus extremos, Espanha sob o Partido Popular, Itália e seu movimento "Comunhão e Libertação", as presidências norte-americanas, preferencialmente republicanas como a de Reagan e George Bush (h) [6].

Durante a década de 90 vários investigadores ocidentais do mundo muçulmano coincidiam em apontar uma "reislamização" da esfera política após as décadas de hegemonia do nacionalismo laico, mas anunciavam a crise terminal das tendências mais extremas do islamismo, tencionadas entre as derrotas sofridas nas tentativas de expandir a jihad a outros territórios como Bósnia, Kosovo e Argélia, e a crescente repressão estatal a que estavam submetidas. Prognosticavam um fortalecimento dos setores "moderados" do establishment político-religioso que levariam ã instalação de regimes mais favoráveis aos interesses do ocidente [7].

No entanto, a realidade desmentiu essas teses "normalizadoras" do Oriente Médio, ainda que não por razões religiosas. Desde os atentados contra as torres gêmias em 2001, passando pela resistência iraquiana, a vitória eleitoral do Hamas nas eleições legislativas palestinas em janeiro de 2006, até o triunfo político do Hezbolah em sua resistência contra Israel na breve guerra do Líbano de julho/agosto de 2006, o chamado "islamismo radical" se instalou na cena mundial como o principal antagonista ã política norte-americana e seus aliados como o Estado de Israel, empregando métodos de ação que em alguns casos imitam as guerrilhas dos anos 70. O peso da "ameaça islamita" nos discursos dos governos e dos meios imperialistas aumenta ã medida que a ação desses movimentos não se limita ao Oriente Médio e aos países muçulmanos e se extendeu sobretudo aos países europeus que foram ou são aliados dos Estados Unidos na guerra contra o Iraque. Tanto nos atentados de Madrid como nos metrôs de Londres, haviam participado jovens filhos ou netos de imigrantes procedentes de países árabes ou muçulmanos. E é necessário levar em conta que na França a comunidade muçulmana chega em torno de 5 milhões, na Grã Bretanha vivem 2 milhões de muçulmanos, e que em ambos os casos, tomados de conjunto, constituem os setores mais empobrecidos da população [8].

É possível a radicalização política de organizações islamitas?

Alguns elementos históricos para responder

O ascenso do islamismo político reabriu um debate no interior da intelectualidade e também da esquerda marxista partidária, em particular na Europa e nos mesmos países do mundo árabe e muçulmano, sobre a possibilidade teórica e a probabilidade histórica de que setores provenientes das filas do islamismo militante radicalizem suas posições apoiando-se no marxismo.

Em um artigo recente [9], Samir Amin constrói uma definição categórica do fenômeno do islamismo político - no qual inclui desde a monarquia saudita a organizações populares - na qual praticamente está excluída esta possibilidade. Uma série de considerações confluem nesta definição, a saber: 1) o islamismo político não é comparável ao surgimento da "teologia da libertação" como tendência de esquerda do catolicismo da América latina, dado que não pregaria a "emancipação" mas sim a submissão; 2) como ideologia é completamente reacionária, delineia um retorno impossível ao passado, mais precisamente ã época em que o islà não havia sido submetido ao capitalismo ocidental. Esta impossibilidade explicaria que os partidos islamitas não têm um programa político concreto; 3) é complementar do neoliberalismo, por isso, junto com o estabelecimento de uma autocracia política, os partidos islamitas constituem o melhor instrumento de domínio da "burguesia compradora", quer dizer, daquele estrato social composto de comerciantes ou donos de imóveis que servem aos interesses seja de um ocupante colonial ou das potências neocolonialistas; 4) por último, como acontece com o catolicismo, o discurso religioso está a serviço de legitimar o exercício do poder político. Com o objetivo de tomar o poder do estado em benefício desse setor burguês, existe segundo Amin uma divisão do trabalho entre as associações "moderadas", como os Irmãos Muçulmanos, que se infiltram no estado, e os grupos clandestinos que recorrem ás ações violentas de tipo terrorista.

Concordamos com Amin que esses elementos apontam a caracterização do islamismo como movimento religioso, que (tal como ocorre com o cristianismo, o catolicismo e o judaísmo) está a serviço das classes dominantes [10]. Em termos gerais, o islamismo político igual ao nacionalismo burguês, busca conciliar as diferenças de classe que dilaceram as sociedades capitalistas muçulmanas, seja através da "unidade da nação árabe" ou por meio da "comunidade dos crentes". Essa ideologia policlassista, com a qual se combate o marxismo, está a serviço dos interesses das burguesias locais que, através de um discurso unificador, buscam evitar que os trabalhadores e os oprimidos desenvolvam uma política independente. No entanto, como diz F. Halliday, é um erro falar do islà como se fosse um movimento ou uma ideologia homogênea, ou como se pudesse ser tratada como uma força social autônoma. Como crença religiosa, o islà tem algumas características homogêneas, mas como movimento político e social é diverso, variando em cada país em seu contexto social e significação política [11].

Seu estudo concreto só pode partir, desde um ponto de vista marxista, do preceito metodológico mais geral do que as ideologias, incluindo as religiosas que têm um desenvolvimento relativamente autônomo, mas não podem tornar absolutamente independente sua existência da realidade material na qual surgem e atuam, quer dizer, as relações sociais, os interesses de classe ou setores de classe que em sua maioria defendem, a relação com as classes exploradoras nacionais ou regionais e a relação com as potências dominantes. Em distintos países e em distintos momentos suas principais organizações têm cumprido diferentes papéis. Enquanto que algumas, como os Irmãos Muçulmanos no Egito ou na Argélia ou os voluntários islamitas no Afeganistão, em geral têm sido instrumentadas para fins reacionários - essencialmente pelo imperialismo ou pelos estados de origem para combater a esquerda marxista -, em processos revolucionários ou de conflitos agudos algumas organizações islamitas se radicalizaram, chegando a expressar em seu seio as aspirações de transformações revolucionárias, rompendo com seu caráter confessional. A revolução iraniana mostrou o desenvolvimento de distintas variantes políticas tanto laicas como de procedência islamita, pois além dos grupos próximos ao khomeinismo e ã burguesia liberal, no curso do processo revolucionário intervieram um leque de grupos de esquerda, desde o Tudeh stalinista, passando pelo chamado "islamo-marxismo" até grupos trotskistas [12].

A revolução iraniana

O exemplo histórico mais ilustrativo que apontamos no trecho anterior é o caminho político dos Mujaidines do Povo na revolução iraniana. Eles tinham origem na ala islamita da Frente Nacional, em particular no Movimento para a Liberdade do Irã, dirigido desde 1961 por Bazargan (nomeado por Khomeini primeiro ministro do governo provisório após a queda do sha) e o ayatollah Taleqani (a diferença dos Fedaiyines que eram quase todos marxistas que haviam rompido com o Tudeh ou com a Frente Nacional). Os mujaidines estavam compostos majoritariamente por filhos de bazaríes e ulemas, tinham muitas mulheres em suas filas e influíam principalmente no movimento estudantil e secundariamente em setores de trabalhadores, ainda que a classe operária tendia a simpatizar com o Tudeh ou com os fedaiyines.

Ideologicamente os mujaidines seguiam Ali Shariati, um sociólogo laico exilado na França durante o regime do sha. Shariati conciliou uma particular interpretação do Corão e do shiismo com as idéias do populismo terceiromundista, incorporando elementos de teóricos anticolonialistas como Frantz Fanon, nos quais busca uma posição intermediária entre o capitalismo ocidental e o marxismo. Sustentava que a luta de libertação nacional não podia ignorar os fatores culturais e religiosos, que forjam a identidade de um povo. Dessa forma introduziu uma versão islamita da "teologia da libertação", na qual se combinava o elemento religioso que fundamentava uma identidade iraniana islà¢mica com outros elementos que faziam a nação iraniana.

Igual aos fedaiyines, os mujaidines haviam se lançado em atividades guerrilheiras, o que para meados dos ’70 lhes havia feito perder muitos militantes e combatentes nas mãos da repressão de Savak e o exército do sha. Com a dinâmica revolucionária, um setor dos mujaidines se radicalizou e começou a aproximar-se do marxismo [13], até que em 1975 a maioria de seus dirigentes votou declarar "marxista leninista" a organização. Em uma carta, o filho do ayatollah Taleqani explica a seu pai este giro radical dos mujaidines do seguinte modo: para organizar a classe trabalhadora, temos que rechaçar o islà e rechaçar a religião para aceitar a principal força dinâmica da história: a da luta de classes. Sem dúvida, o islà pode cumprir um papel progressivo, especialmente na hora de mobilizar os intelectuais contra o imperialismo. Mas é somente o marxismo que proporciona uma análise científica da sociedade e se centra nas classes exploradoras para sua libertação" [14].

Esta transformação da ala radical dos mujaidines em uma organização marxista, de tendência maoísta, provocou uma crise interna e a ruptura violenta dos setores mais conservadores da organização. De modo que quando começaram as ações revolucionárias em 1977 havia dois mujaidines: os islamitas que tinham peso nos setores estudantis, e os marxistas que haviam se voltado ã classe operária e onde militava a tendência maoísta Peykar. A evolução da ala esquerda dos mujaidines (do islamismo a um certo marxismo, ainda que populista e maoísta), mostra que o fundamento religioso, quando se abrem processos revolucionários, não é algo absoluto que abstratamente descarte toda a possibilidade de radicalização política [15]. Isso acontece porque os conflitos que abrem a dinâmica revolução-contrarrevolução têm suas raízes não na ideologia, quer dizer, na falsa consciência com a qual se concebem em um primeiro momento os atores sociais (religiosa ou não), mas sim nas contradições geradas nas relações sociais de produção e na dominação política das classes exploradoras.

Por sua vez, o caminho político dos mujaidines deixou em evidência as conseqüências desastrosas para o movimento de massas da estratégia populista de colaboração de classes. Em 1981 os mujaidines se declararam em guerra contra o regime de Khomeini e antes de serem derrotados realizaram várias ações armadas num momento em que a teocracia estava consolidando seu poder interno em torno da guerra contra o Iraque. A repressão contra os mujaidines foi brutal. Terminaram exilando-se na França onde se aliaram com a oposição liberal ao regime teocrático. De ser um dos fatores chave para a derrota militar dos setores do exército que ainda se mantinham leais ao sha nas jornadas de 10 e 11 de fevereiro de 1979, os mujaidines do povo terminaram estabelecendo uma relação de utilização mutua com Estados Unidos e França, assumindo uma posição abertamente pró-imperialista [16]. Durante a guerra fratricida entre Irã e Iraque os mujaidines combateram do lado do Iraque contra o Irã, esperando que a guerra acabasse por colapsar a República Islà¢mica, coincidindo com a política dos Estados Unidos. No atual enfrentamento entre Irã e Estados Unidos, seu principal dirigente, Maryam Rajavi, aconselha a aplicar sanções econômicas combinadas com uma política de "revolução laranja" alentada pelos Estados Unidos e pela União Européia [17].

O mecanismo pelo qual o clero aniquilou os opositores e acabou estabelecendo um regime fortemente autoritário não é particularmente religioso ou islà¢mico, mas sim é como qualquer outro setor reacionário na história que tenta frear uma revolução ou apropriar-se do poder de estado, recorre ao terror estatal e ã repressão política e social. Indiscutivelmente a "moral religiosa" fez com que a opressão social fosse brutal, sobretudo mas não somente contra as mulheres, restringindo as liberdades democráticas conquistadas com a queda do sha. A prova está em que Khomeini necessitou mais de dois anos para estabilizar um regime teocrático. A debilidade política da classe operária para apontar uma alternativa para o conjunto dos oprimidos, a ausência de uma direção revolucionária em uma situação na qual os grupos de esquerda existentes, em particular o Tudeh pró-soviético, professavam a colaboração de classes e o populismo político, e a hostilidade imperialista - não o caráter "medieval" ou "irracional" de Khomeini ou o "islamofascismo" -, são alguns dos elementos que explicam o paradoxo da revolução iraniana.

Hamas e Hezbolah, o populismo islamita

Amin assinala em seu artigo a relação entre os fins ideológicos reacionários dos islamitas e a falta de um programa político concreto. Efetivamente este parece ser o caso da Al Qaeda, que expressa suas ambições políticas em uma linguagem religiosa messiânica, um discurso especular oposto do "choque de civilizações", que prega desde o islamismo à luta global contra o "ocidente" como "terra da impiedade".

Mas a generalização dessas características leva a conclusões incorretas quando são aplicadas a certas organizações islamitas que dirigem movimentos nacionais.

Daremos dois breves exemplos. Em janeiro de 2006, após o seu triunfo ressoante nas eleições legislativas, o Hamas apresentou ao parlamento palestino um programa de governo de 39 pontos que em linhas gerais poderia ser avaliado como um programa reformista desde o ponto de vista social e nacionalista burguês em relação ao conflito palestino. Entre outros pontos inclui:

O fim da ocupação e dos assentamentos, a demolição do muro do apartheid e a construção de um estado palestino independente e com plena soberania com al Quds (Jerusalém) como sua capital. Direito ao retorno de todos os refugiados expulsos pelo estado de Israel. Reconhecimento da resistência em suas distintas formas como um direito legítimo do povo palestino para pôr fim ã ocupação e recuperar os direitos nacionais. Melhorar as condições de vida dos cidadãos e alentar a solidariedade social, expandir a rede de saúde e educação e desenvolver serviços para a população. Neste programa nem sequer se mencionava o estabelecimento de um estado islà¢mico baseado na sharia, ainda que, como sabemos, o objetivo último desta organização (fundar no território histórico palestino um estado confessional tem um caráter reacionário e é incapaz de dar uma saída progressiva ás justas aspirações nacionais do povo palestino.

No caso do Hezbolah, seu programa original foi publicado em fevereiro de 1985. Ali se definia a organização como "nem capitalista nem comunista". Seus eixos centrais são: 1) a reivindicação da relação com Irã, reconhecendo Khomeini como chefe espiritual [18]; 2) a luta pelo estabelecimento de um estado islà¢mico regido pela sharia, ainda que tendo em conta o caráter multiconfessional do Líbano, este objetivo máximo só poderia ser alcançado por consenso e não pela força; 3) a definição dos principais inimigos: Estados Unidos e seus aliados, o estado de Israel e as falanges libanesas; 4) os objetivos nacionais da organização: expulsar os norte-americanos, os franceses e seus aliados pondo fim ã empresa colonialista, submeter a juízo as falanges, permitir que se eleja livremente o tipo de governo, ainda que o Hezbolah se declare partidário de um regime islà¢mico como única alternativa para deter a ingerência imperialista. Em linhas gerais o Hezbolah combina nacionalismo e islamismo, o que se expressa em um discurso antiimperialista e terceiromundista com o adendo religioso, seguindo o exemplo do Irã que financia e treina em grande medida as suas milícias.

Posteriormente a reivindicação do estado islà¢mico foi passando para um plano mais estratégico e remarcada pelo conceito de "estado humanista" concebido como um tipo de estado assistencialista sem base confessional, daí o desenvolvimento de suas amplas redes sociais. Isso não significa de nenhuma maneira que haja desfigurado o caráter religioso da organização, que atualmente segue de maneira oficial o grande ayatollah iraniano Ali Khamenei [19].

O Hezbolah começou a participar do sistema eleitoral em 1992, obteve cargos parlamentares, ingressou no governo de Siniora em abril de 2006 e se retirou do mesmo em novembro, logo após a guerra contra Israel. O discurso político dessa organização expressa claramente seu caráter populista, similar a outras correntes ou líderes nacionalistas, que baseia sua estratégia pela "unidade nacional" - que só pode ser burguesa -, contra o imperialismo norte-americano e o estado de Israel, deixando completamente de lado os antagonismos de classe que dividem a sociedade libanesa.

Em ambos os casos, a moral religiosa como valor absoluto e como lei de Estado não só atenta contra liberdades democráticas elementares, mantendo um instrumento de opressão social, mas também pretende ocultar o fato de que nas sociedades muçulmanas existem, como no ocidente, exploradores e explorados, e que a religião está a serviço de manter o domínio dos primeiros. Mas isso não impede de levantarem programas políticos concretos, que em ambos os casos não diferem muito de outras tendências populistas laicas do ocidente.

Os marxistas e a religião

O marxismo tem como base filosófica o materialismo dialético, que nos dizeres de Lenin "fez plenamente suas as tradições históricas do materialismo do século XVIII na França e de Feuerbach (primeira metade do século XIX) na Alemanha, do materialismo incondicionalmente ateu e decididamente hostil a toda religião" [20]. Esta tradição materialista desmascarou o caráter ilusório e o papel ideológico da religião, que como é criada pelo homem, transforma este em sua criação. Para Marx, este homem que cria o pensamento religioso não é abstrato, mas sim vive em uma sociedade e um estado concreto; portanto, a religião é produto dessas relações sociais e políticas historicamente concretas, é a "interpretação geral deste mundo, sua lógica em forma popular, seu ‘point d’honneur’ espiritualista, sua exaltação, sua confirmação moral, seu solene complemento, seu consolo e justificação universal" [21]. Por isso mesmo é para Marx o "ópio do povo". Em conseqüência disso, como diz Lenin "o marxismo considera sempre que todas as religiões e igrejas modernas e cada uma das organizações religiosas são órgãos da reação burguesa, chamados a defender a exploração e a embrutecer a classe operária" [22].

No entanto, os marxistas não lutamos contra a religião desde uma perspectiva anticlerical liberal, que lhe dá um valor positivo absoluto ao secular. Para um intelectual ilustrado a persistência das idéias religiosas em amplos setores do movimento de massas se explicará essencialmente por sua ignorância ou seu atraso. Para os marxistas, porém a raiz mais profunda da religião nos nossos tempos é a opressão social das massas trabalhadoras, sua aparente impotência total frente ás forças cegas do capitalismo, que a cada dia, a cada hora causa aos trabalhadores sofrimentos e martírios mil vezes mais horrorosos e selvagens que qualquer acontecimento extraordinário, como as guerras, os terremotos, etc. [23]

Porque a religião não é mais do que a visão invertida da sociedade e surge das relações sociais materiais, a luta contra a religião não pode ser um combate ideológico e abstrato, mas sim "deve vincular esta luta ã atividade prática concreta do movimento de classes, que tende a eliminar as raízes sociais da religião" [24].

Quando tomaram o poder em 1917, os bolcheviques se enfrentaram com o problema prático de sustentar uma aliança com os povos muçulmanos, oprimidos pela autocracia czarista na qual a questão nacional se apresentava sob a forma religiosa. Como aponta o historiador E. Carr, o poder soviético passou de ter uma idéia vaga do que se tratava os povos oprimidos que esperavam ser libertados dos mullahs, a surpreender-se ao "descobrir que a influência do islà sobre os povos nômades e sobre algumas partes de Ásia Central era pouco mais que nominal, permanecia em transição em outros terrenos como uma instituição tenaz e vigorosa, que oferecia uma resistência muito mais feroz ás novas crenças e práticas que a da Igreja Ortodoxa. Nas regiões em que era forte - notavelmente no norte do Cáucaso - a religião muçulmana era uma instituição social, legal e política tanto como religiosa que regulava o modo da vida diária de seus membros quase em cada detalhe. Os sacerdotes muçulmanos e os mullahs eram juízes, legisladores, professores e intelectuais, ao mesmo tempo que chefes políticos e militares" [25].

O atraso dessas regiões remotas do ex-império russo não se devia ã religião de seus habitantes, mas ás relações sociais semi-feudais que caracterizavam em maior parte ás zonas camponesas - sejam muçulmanas ou ortodoxas - do território.

Em 24 de novembro de 1917, o governo soviético emitiu um chamado "A todos os operários muçulmanos da Rússia e do Leste", no qual dizia:

“Muçulmanos da Rússia, tártaros de Volga e de Crimea, kirguises (quer dizer, kazajos) e sartos da Sibéria e do Turquestão, turcos e tártaros de Tanscaucásia, chechenos e montanheses do Cáucaso, e todos aqueles cujas mesquitas e oratórios foram destruídos, cujas crenças e costumes foram atropeladas pela bota dos czares e dos opressores da Rússia. A partir de agora vossas crenças e costumes, vossas instituições nacionais e culturais são livres e invioláveis. Organizai vossa vida nacional em completa liberdade. Tens o direito de fazê-lo. Sabei que vossos direitos, como os de todos os povos da Rússia, estão sob a poderosa proteção da Revolução e seus organismos, os soviets de operários, soldados e camponeses. Prestai vosso apoio a esta Revolução e a seu governo” [26].

Ainda que a relação da III Internacional com os povos muçulmanos e seus líderes nacionalistas tenha sido contraditória (basta recordar o Congresso de Bakú de 1920), a política do governo soviético revolucionário perante estes segue sendo um exemplo de como a classe operária pode ganhar como aliadas as massas populares oprimidas.

Incontestavelmente, a agudização da luta de classes no Oriente Médio - essencialmente como luta antimperialista e/ou de libertação nacional - acompanhado pelo ascenso do islamismo militante, cria uma situação altamente contraditória para os marxistas. Há muitos anos existe uma polarização nas filas da esquerda, em particular dos grupos do trotskismo europeu, em relação a qual política ter frente a essas organizações, dando lugar a duas posições que, em nossa opinião, são equivocadas. De um lado estão aqueles que, dando um valor absoluto ao caráter reacionário da religião - manifestado na opressão ás mulheres, o rechaço e a perseguição ã esquerda marxista, a imposição de valores morais rigorosos, entre outros elementos corretos -, antepõe a defesa do "laicismo" quase como um princípio, adotando assim uma posição "democratista" abstrata. A tendência oposta é a que considera os movimentos islamitas em si mesmos como "progressivos" e "antimperialistas", por ser expressão política das massas mais exploradas e oprimidas.

Vários fatores (dos quais não podemos dar conta nestas linhas) se combinam para explicar o ascenso do islamismo político, desde as tradições culturais e nacionais até elementos histórico-políticos que marcaram o mundo árabe e muçulmano. No entanto, desde o ponto de vista da luta de classes, um dos elementos fundamentais foi o retrocesso da classe operária mundial nas últimas décadas, que impediu que seus setores mais avançados, tanto nos países centrais como no mundo semicolonial, apresentassem uma alternativa para os povos oprimidos pelo imperialismo. Isso se observou nas mobilizações contra a guerra do Iraque que, apesar de sua massividade, na maioria dos casos não contou com ações operárias contundentes que pudessem deter as engrenagens da maquinaria bélica mediante greve geral ou sabotagem. O outro aspecto que cremos ser decisivo para o fortalecimento dos grupos islamitas nos últimos anos, é a crise da perspectiva socialista e o internacionalismo operário. Cremos que estes elementos, de superar o estado atual, poderão influir nos futuros processos de radicalização política de setores que nos países oprimidos enfrentem o imperialismo. Essa é nossa aposta estratégica.


Publicado originalmente em Herramienta - Revista de debate e crítica marxista n° 35, Buenos Aires, Junho de 2007. www.herramienta.com.ar


Claudia Cinatti é integrante do staff das revistas Estrategia Internacional e Lucha de Clases. Membro do Conselho Assessor do Instituto de Pensamento Socialista Karl Marx.

Autora de numerosos artigos, entre eles pode destacar-se:

 "La impostura postmarxista"

 "A propósito de una lectura de El espinoso sujeto: El centro ausente de la ontología política de Slavoj Zizek"

 "De saberes revolucionarios y certezas posmodernas. Una reflexión sobre la teoría marxista a propósito del libro: Verdades y saberes del marxismo..."

 "Pensamiento de la insumisión o filosofía de la resignación.Comentario de Filósofos en la tormenta de Élisabeth Roudinesco"

 "La actualidad del análisis de Trotsky frente a las nuevas (y viejas) controversias sobre la transición al socialismo"

 "Más allá de la democracia liberal y el totalitarismo. Trotsky y la democracia soviética" com Emilio Albamonte.

 

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