WEB   |   FACEBOOK   |   TVPTS

 
”Era de democratização” ou instabilidade que anuncia maiores tormentas?
por : Eduardo Molina

21 Sep 2005 |

Se governos “progressistas” - Lula, Tabaré Vázquez, Kirchner, Lucio Gutiérrez - foram apresentados como iniciadores de uma “era de democratização”, que permitiria resolver pela via de reformas graduais e “na democracia” as crises estruturais e as agudas desigualdades e situações de extrema penúria para as classes trabalhadoras depois de duas décadas de “neoliberalismo” a serviço do grande capital e do imperialismo.

Se desde o início estas forças colaboraram para mostrar a “governabilidade”, em funções de governo se mostra a verdadeira origem deste “reformismo sem reformas”. Nem o peso opressor da pilhagem imperialista nem a intolerável situação das massas pobres do campo e da cidade, nem os brutais níveis de exploração do proletariado mudaram no Brasil, na Argentina, no Uruguai ou na Venezuela. Pelo contrário, os governos “progressistas” - para além das diferenças entre os distintos regimes - se limitam a administrar o Estado semicolonial. Ao se proporem ã “contenção” das crises estruturais e do ascenso de massas nos marcos da democracia burguesa que propunham “renovar”, mostram também neste terreno seus limites e tampouco garantem nem a “renovação” nem a estabilização duradoura.

Apesar das condições relativamente favoráveis (a recuperação econômica e a bonança nos preços de algumas matérias-primas e do petróleo, uma ampla expectativa inicial entre as massas, relativas margens de manobra no cenário internacional), os “progressistas” estão mostrando rapidamente seus limites e entrando em uma fase de desgaste e crise, como é a situação do governo Lula, máximo expoente deste tipo de alternativa, hoje sacudido por escândalos de corrupção. As recentes quedas de Gutiérrez no Equador e de Mesa na Bolivia sob o embate das massas (ambos foram apoiados em seu momento por todo o reformismo latino-americano) mostram a impotência do progressismo frente a situações agudas da luta de classes.
Por outro lado, a “revolução bolivariana” de Chávez, que se coloca como alternativa ã esquerda dos Lula ou Kirchner, tampouco rompe com as condições de subordinação ao imperialismo e se limita a buscar maiores margens para um desenvolvimento capitalista “nacional”.

Em vez de se abrir uma “era de democratização” e estabilização duradoura, tende-se ao retorno das tendências ã instabilidade política e ã continuidade do ciclo ascendente da luta de classes, como mostram os recentes levantes de massas no Equador e Bolívia, as mobilizações que recorreram a América Central ou o processo de greves operárias na Argentina, sobre um fundo de inumeráveis lutas operárias, camponesas e populares. A situação latino-americana é preparatória de acontecimentos superiores na luta de classes e na vida política da região. Vejamos alguns de seus elementos.

 1. Indisciplina dos vassalos

O “Consenso de Washington” que nos anos 1990 assegurava o alinhamento da América Latina com as políticas dos Estados Unidos é coisa do passado. Sua hegemonia sobre a região que considera historicamente seu “quintal” começa a ser questionada por inúmeros problemas. Com os Estados Unidos concentrados nos problemas do Iraque e do Oriente Médio e a Europa voltada para a UE e para conseguir conformar seu próprio “quintal” na Europa Oriental, o apaziguamento das rivalidades interimperialistas no solo latino-americano não é suficiente para compensar essa deterioração, estendendo-se assim a “indisciplina dos vassalos”.

Hoje, ainda que o México, os governos centro-americanos, a Colômbia e o Chile se alinhem com Washington, ao sul do Canal do Panamá as políticas norte-americanas se chocam com crescentes obstáculos.

No terreno econômico, é um fato o fracasso da ALCA e dos acordos bilaterais com os quais os EUA tentam avançar (TLCCA, TLC andino, acordo com a Colômbia etc.) não compensam esse fracasso.

No terreno político e diplomático, Washington não pôde impedir a queda de vários de seus agentes mais incondicionais (pela via eleitoral ou frente a levantes de massas). Pela primeira vez os EUA fracassaram em impor seu próprio candidato na OEA. O Brasil aspira a um papel próprio como “líder regional” para pechinchar melhores condições na sua subordinação ao imperialismo; a retórica antinorte-americana da Venezuela e sua aliança com Cuba se converteram em um incômodo para Washington.

Mas as pressões imperialistas provocam uma maior polarização, instabilidade política e respostas das massas latino-americanas em ascenso. Isto desgasta também a ordem regional dos Estados, com rusgas bilaterais de diversos tipos (entre a Colômbia e a Venezuela, o Chile e a Bolívia etc.), levando a permanentes negociações e a que os países maiores da área devam cumprir um papel ativo nas crises, como no Equador, na Bolívia ou no Haiti.

 2. Inconsistência do “sul-americanismo”

A enunciada “Comunidade Sul-americana das Nações”, um Mercosul renovado ou a petroleira latino-americana proposta por Chávez foram apresentados como alicerces de uma “construção sul-americana”, como contrapeso ã pressão imperialista. Concretamente, este discurso não conseguiu sequer aproximar posições entre os distintos países nem ser uma alternativa para a ordem regional.

Por exemplo, as disputas comerciais entre as burguesias brasileira e argentina mantêm o Mercosul (um acordo feito sob medida para as montadoras de automóveis transnacionais) em uma profunda crise. As aspirações do Brasil a ser líder regional combinam o regateio diplomático com os Estados Unidos com as tarefas de polícia no Haití e de garantir a ordem regional no Equador e na Bolívia, com a defesa dos interesses espoliadores de seus próprios capitais nos países mais débeis da região (como a Petrobrás e a Odebrecht). Para competir, Kirchner, agente regional da REPSOL e da Perez Companc, corteja os Estados Unidos. Assim, os únicos planos consistentes de “integração” são os do grande capital e das transnacionais, como o anunciado “anel energético” do Cone Sul, aos quais se une Chávez e com a PDVSA, e a exploração gaseífera concedida ás transnacionais norte-americanas, não questionando a "integração" do grande capital, e sim contribuindo para legitimála politicamente.

As burguesias latino-americanas, ainda que barganhem em torno deste ou daquele aspecto comercial ou político, não estão dispostas a reverter a ordem regional de subordinação semicolonial, e a inconsistência do “sul-americanismo” reflete a impotência das mesmas.

 3. A crise do Governo Lula e os limites da “contenção”.

Os escândalos de corrupção estouraram uma grande crise política no Brasil, no “modelo a ser seguido” da “esquerda pragmática”. O governo de Lula não só desmentiu as ilusões reformistas, mas também continuou aplicando políticas de caráter neoliberal e pactuando com o imperialismo, e a corrupção ilustra a profunda integração do PT ao podre regime da democracia brasileira. Ainda que as massas não tenham entrado em cena nesta crise política, a popularidade de Lula começa a se desgastar e na vanguarda surgem processos de distanciamento/ruptura com o PT.

Esta crise é um duro golpe político e ideológico para o “reformismo democrático” continental desmascarando o conteúdo burguês e os limites do “reformismo sem reformas”, obrigado a administrar os planos do grande capital e do imperialismo, e além disso cumprindo um papel canalhesco na defesa da ordem regional semicolonial frente ás crises mais agudas e ás irrupções de massas, como fazem Lula, Kirchner ou Tabaré frente ao Haiti, o Equador ou a Bolívia.

 4. Um mapa político instável

As alternativas governamentais “progressistas” buscaram responder ás situações de crise estruturais e ao ascenso de massas para recompor um equilíbrio burguês frente ás novas correlações de forças. As classes dominantes locais se viram, em alguns casos, obrigados a optar por estas alternativas frente ao risco de maior desestabilização ou de irrupções de massas, como no Brasil ou no Uruguai, dando origem a governos de “frente-popular preventiva”; e em outros casos, permitindo a subida ao governo de camarilhas pequeno-burguesas com um discurso centro-esquerdista, para recompor o equilíbrio após turbulências como na Argentina com Kirchner.

Estes governos, com variantes, expressam distintos projetos de conciliação de classes para conter o desenvolvimento das crises nacionais e os processos de massas, o que inclui negociar uma readequação das relações entre as distintas frações das classes dominantes e alguns retoques nas relações com o capital estrangeiro e com o imperialismo.

O caso de Chávez aparece mais ã esquerda. Beneficiado pelos altos preços do petróleo e depois da derrota de várias tentativas direitistas de derrubá-lo, busca se consolidar com algumas concessões ás massas e uma retórica “bolivariana” (que também se desdobra em sua política exterior, apoiada na aliança com Cuba), para cumprir o papel de árbitro entre o ascenso de massas e a reação burguesa e imperialista, de forma que alguns traços do Chavismo lembram os regimes “bonapartistas sui generis” (como os de Cárdenas, Perón ou Vargas em outros momentos da história regional).

A relativa “normalidade burguesa” da Colômbia e do Chile contrasta com a instabilidade predominante. Nos países onde a crise e a luta de classes são mais agudas, as primeiras tentativas de contenção através de alternativas progressistas se desmoronaram rapidamente. No Equador, o Coronel Gutiérrez, que tinha assumido com o apoio de toda a esquerda reformista e populista perdeu o crédito ao agir como agente do imperialismo e caiu sob o embate de massas. Seu sucessor Palacios encabeça um governo muito débil e instável, encurralado entre a pressão imperialista e o ascenso de massas. Na Bolívia, depois que as jornadas revolucionárias de junho varreram o “progressista” Mesa, Rodriguez dirige um governo de transição até as eleições gerais adiantadas para o dia 4 de dezembro, que colocam a possibilidade de que surja um governo de frente-popular encabeçado por Evo Morales.

 5. Equador e Bolívia: linha de frente do ascenso de massas

Os projetos de contenção tornaram mais lento porém não abortaram o ciclo ascendente da luta de classes na América Latina. A América do Sul em particular, segue sendo a região mais avançada da luta de massas em nível internacional.

Assim, as tendências ã ação direta das massas voltaram a emergir em países com crises mais agudas, sobretudo nos países andinos com novas rebeliões de massas, ou mais incipientemente na América Central com as mobilizações na Guatemala, na Nicarágua ou no Panamá. No Equador e na Bolívia, os levantes, grandes ações historicamente independentes, derrubaram dois governos tidos até pouco antes como “progressistas”.

Nesses países o ascenso é mais tumultuoso e de caráter mais popular, com elementos de guerra civil e diretamente político, enfrentando os governos e regimes, ainda que sem que o movimento operário ocupe ainda um lugar central como sujeito diferenciado.

Em geral, ainda que os movimentos camponeses e indígenas ou de caráter popular que predominaram nos anos 1990 e na primeira fase do atual ascenso seguem cumprindo um papel ativo, o ascenso se tornou mais urbano e o papel do movimento operário começa a ser mais relevante. Nos países onde a crise está mais contida, o processo se expressa como ondas de lutas mais reivindicativas, como na Argentina com numerosos processos de greve, onde começa a se mostrar o peso do proletariado empregado; como no Uruguai nas primeiras mobilizações que enfrentaram o governo de Tabaré Vázquez; ou em incipientes processos de reagrupamento sindical e político, como no Brasil, nos processos políticos e sindicais na vanguarda operária que se distancia do PT e do governo Lula.

 6. Novos passos na recomposição do movimento operário

A crescente atividade e participação da classe operária no processo é um elemento da maior importância política e estratégica. Hoje a América Latina é, em seu conjunto, uma das regiões mais urbanizadas e proletarizadas do planeta, com as grandes concentrações operárias industriais e de serviços no Brasil, no México, na Argentina e em outros países ou inclusive em países de monor desenvolvimento relativo, como nas montadoras centro-americanas. Esta enorme força social é a base para o surgimento de um novo movimento operário latino-americano, depois de longos anos de retrocesso. Ao calor das crises políticas, das rebeliões de massas e de suas próprias ações, avança um processo ainda incipiente, lento e tortuoso de recomposição da subjetividade operária - refletido na acumulação de experiência, organização e consciência, particularmente de setores avançados.

No Brasil setores da vanguarda operária historicamente ligada ao PT estão em um processo de reflexão e giro ã esquerda que os leva a romper com o lulismo, gerando a fenômenos antiburocráticos como a CONLUTAS. Na Argentina, apesar da “contenção” obtida com Kirchner e da cumplicidade da burocracia sindical, vem se dando importantes ondas de lutas e, nelas, surge uma vanguarda operária combativa, que começa a recuperar as tradições do classismo ao unir a luta antipatronal, antiburocrática e contra o governo, e setores da mesma tem feito importantes experiências como em Zanon - fábrica posta a produzir sem patrões.

Na Bolívia o debate na COB sobre a necessidade de uma expressão política operária e independente e alguns processos incipientes de luta poderiam estar antecipando passos em direção ao surgimento de um novo movimento operário.

No Equador, o recente levante teve um caráter mais urbano e com maior participação operária, em contraste com a preponderância do movimento camponês e indígena nas etapas anteriores. Nas lutas dos países centro-americanos foram importantes os papeis de setores assalariados, como na greve geral panamenha.

 7. Novos fenômenos políticos e a luta pela expressão política independente da classe operária

Neste clima político e social, o inicio do desgaste da “esquerda pragmática” e da centro-esquerda mais comprometida com a democracia semicolonial - desde o PRD no México até o PT no Brasil - abre espaços para a esquerda, na qual tenta-se construir distintos fenômenos políticos neo-reformistas com um discurso mais radical e se apoiando nos “movimentos sociais” mais combativos.
O giro ã participação política do EZLN expresso na 6ª Declaração da Selva Lacandona é o mais notável destes movimentos. Na Bolívia, o fortalecimento do MAS e seu projeto de “reformas democráticas”, deixa por ora em segundo plano outras variantes frentepopulistas mais ã esquerda.

Na Venezuela, os limites da “Revolução Bolivariana” parecem estar abrindo processos de reflexão entre os trabalhadores e jovens avançados, expressando uma incipiente diferenciação do chavismo. No Brasil se expressam alguns projetos ã esquerda do PT e da CUT, que se preparam para capitalizar o desprestígio do petismo.
Estes posicionamentos, ainda que reflitam distorcidamente o giro ã esquerda das massas latino-americanas e a experiência com as grandes mediações tradicionais, contribuem para estabelecer novos obstáculos neo-reformistas na evolução política independente dos setores avançados.

Trata-se pelo contrário, de alertar as tendências do movimento operário a entrarem em cena com seus próprios métodos de luta e organização, e pelo desenvolvimento de uma expressão política independente, de classe, com um programa operário e socialista, no caminho de unir as fileiras deste novo proletariado e prepará-lo para acaudilhar a aliança com os pobres da cidade e do campo.

 8. Que a classe operária encabece a luta continental contra o imperialismo.

Junto ã monstruosa dívida externa, um elemento central da espoliação imperialista foi a entrega dos recursos naturais e energéticos e das empresas públicas ás transnacionais. A demanda de sua nacionalização cobra força, como mostra a luta contra as petroleiras na Bolívia e no Equador. Frente a esta situação, os governos “progressistas” se mostram como defensores do capital estrangeiro. Mesmo com os discursos “sul-americanistas” ou “bolivarianos”, as burguesias nacionais são incapazes de realizar a necessária integração econômica e política de nossos países, desde o Chile até Cuba, pois isto exige romper com imperialismo. Somente a classe operária latino-americana, encabeçando as massas oprimidas e exploradas de toda a região, pode resolver essas tarefas construindo uma Confederação das Repúblicas Socialistas da América Latina e do Caribe. Tomar, assim, em suas próprias mãos as tarefas anti-imperialistas, pela expulsão do imperialismo do Iraque e da América Latina, a solidariedade com a rebelião das massas bolivianas e equatorianas ou a defesa internacionalista de Cuba, ajudará a classe a avançar em direção a sua mais ampla independência política. Mas este combate é indissociável da luta para forjar laços firmes de unidade com a classe operária norte-americana contra o inimigo comum, o capitalismo imperialista.

 9. Novas oportunidades para a construção de correntes operárias revolucionárias.

Os processos políticos, o giro ã esquerda e o despertar deste novo movimento operário estão abrindo maiores oportunidades para a construção de correntes revolucionárias, ligadas ã vanguarda operária, em vários países da América Latina.

O combate político e ideológico contra o reformismo e suas distintas expressões (assim como a crítica ao centrismo que capitula ao mesmo) esta ligado cada vez mais estreitamente ao combate para desenvolver em um sentido revolucionário as expressões mais avançadas da luta antipatronal, antiburocrática e antigovernista.
Um eixo político unificador para seu reagrupamento é a luta pela organização política dos trabalhadores, desde onde enfrentar as propostas reformistas “combativas”, junto com a coordenação, defesa e desenvolvimento das experiências mais avançadas de luta e organização, como as ocupações de fábrica e sua posta em marcha nas mãos dos operários, com uma estratégia de auto-organização, para ajudar os trabalhadores a tomarem em suas próprias mãos o conjunto dos problemas da sociedade e se prepararem como classe dirigente, para acaudilhar a rebelião das massas oprimidas e exploradas do campo e da cidade em direção ao seu próprio poder.

Estas tarefas são centrais na luta para construir genuínas correntes trotskistas no seio da vanguarda operária e da juventude, no combate para construir verdadeiros partidos revolucionários dos trabalhadores, seções latino-americanas de uma IVª Internacional reconstruída como Partido Mundial da Revolução Socialista.

 

Receba nosso boletim eletrônico.
Online | www.ft-ci.org


Organizações da FT
A Fração Trotskista-Quarta Internacional está conformada pelo PTS (Partido de los Trabajadores Socialistas) da Argentina, o MTS (Movimiento de Trabajadores Socialistas) do México, a LOR-CI (Liga Obrera Revolucionaria por la Cuarta Internacional) da Bolívia, o MRT (Movimento Revolucionário de Trabalhadores) do Brasil, o PTR-CcC (Partido de Trabajadores Revolucionarios) do Chile, a LTS (Liga de Trabajadores por el Socialismo) da Venezuela, a LRS (Liga de la Revolución Socialista) da Costa Rica, Clase Contra Clase do Estado Espanhol, Grupo RIO, da Alemanha, militantes da FT no Uruguai e Militantes da FT na CCR/Plataforma 3 do NPA da França.

Para entrar em contato conosco, escreva-nos a: [email protected]