FT-CI

Uma polêmica sobre as frentes “antineoliberais” e os “partidos amplos anticapitalistas”

Que partido para qual estratégia?

23/02/2009 EI Brasil N°3

Introdução

Nos últimos anos têm-se voltado a um lugar comum, tanto nas organizações de esquerda como nos meios acadêmicos: o debate em torno da relação entre o “político” e o “social”. Estas polêmicas abarcam desde a reafirmação de teorias liberais por meio de postulados pós-marxistas que reafirmam a autonomia absoluta da esfera política, ou seja, sua independência em relação a toda determinação objetiva [1], até a reelaboração por parte de certas correntes de esquerda, como a Liga Comunista Revolucionária da França ou o Socialist Workers Party da Grã Bretanha sobre problemas históricos da estratégia marxista, como a relação entre a luta sindical e a luta política e, em última instância, entre os interesses imediatos e os objetivos históricos do proletariado.

Essas discussões não são uma novidade, pelo contrário, atravessaram a história do marxismo e do movimento operário, ao menos no último século e meio. O fato de que a desigualdade entre o “político” e o “social” surja das condições próprias do domínio capitalista não esgota a explicação de que essa se expresse com características concretas em distintos períodos históricos.

No século XIX, Marx mostrava essa relação, usando os termos da dialética hegeliana, como a passagem da “classe em si” em “classe para si”, ou a transformação da classe operária em “partido político” [2].

A concepção de que o proletariado deveria atuar no terreno político, na luta por destruir o poder burguês e estabelecer seu próprio Estado, diferenciou entre outras coisas, o marxismo de outras correntes que atuavam no seio do movimento operário no século XIX, como o tradeunionismo, o socialismo utópico e o anarquismo.

No entanto, esta relação de maneira alguma era harmônica. Marx distinguia aquilo que chamava de “partido no sentido histórico”, identificado com a classe operária enquanto sujeto político consciente de seus objetivos, que antecipava, já na sua existência, a sociedade que estaria por vir e o “partido de existência efêmera” [3], ou as organizações concretas que tinham um caráter transitório e que podiam deixar de coincidir com os objetivos históricos do proletariado.

Esta discussão adquiriu maior importância ao longo do século XX em que, diferente do anterior, por meio do imperialismo abriu-se uma época de “crises, guerras e revoluções”, caracterizada pela atualidade da revolução proletária.

A contradição entre “espontaneidade e consciência” foi chave nas lutas políticas no marxismo russo entre 1902 e 1903, Lenin se enfrentando com o economicismo, cujas principais conclusões estão expressas em O que fazer?. Ali, Lenin, tomando ao seu modo uma definição de Kautsky, diferenciava a consciência tradeunionista da classe operária e a “ciência socialista”, aportada “desde fora” pela intelectualidade marxista. A luta política contra o czarismo incluía, desse modo, uma dimensão político-ideológica: para Lenin, a ideologia burguesa funcionava espontaneamente no nível da luta sindical, por isso era necessária a construção de uma organização revolucionária que se nutria da classe operária, mas não se confundia com ela [4].

Esta discussão voltou a ser colocada no curso das distintas revoluções russas, tanto em 1905 como em outubro de 1917, sobre a relação entre os soviets como organismos de frente única e auto-organização de massas e o partido bolchevique, na realização da ditadura do proletariado, que culminará na formulação de Trotsky sobre o pluripartidarismo soviético como norma programática para as sociedades de transição e na formulação do Programa de Transição, que superava a velha divisão entre programa mínimo e programa máximo com a formulação de um sistema de consignas transitórias que atuavam como ponte entre a consciência atual e os interesses históricos do proletariado.

Atualmente, o conteúdo concreto que têm essas discussões está determinado por um tipo de “espírito de época”, herdado da derrota do último ascenso de 1968-76, que combina o questionamento tanto em relação ao “sujeito social” – a classe operária – como em relação ao “sujeto político” – o partido leninista –, sobre o qual o marxismo clássico fundamentou historicamente sua estratégia da revolução social [5]. Este sentido comum que se constituiu na moda teórica das últimas décadas, tem impregnado algumas das correntes mais oportunistas da chamada “extrema esquerda”, de origem trotskista [6].

Uma série de fatores históricos convergiram para a conformação de um cenário complexo: a ofensiva neoliberal; o retrocesso da classe operária nas suas conquistas materiais, na sua organização e capacidade de luta e, finalmente, o colapso dos regimes stalinistas entre 1989-1991 e a restauração capitalista sem resistência operária. São estes os ingredientes para que, desde as fileiras do marxismo militante até o marxismo acadêmico imbuído pelas ideologias da moda, fosse proclamado, de fato, o fim da era aberta pela Revolução Russa de outubro de 1917 [7].

Em um artigo no qual tentava rebater os argumentos daqueles que, pretendendo atacar o stalinismo, atacavam o bolchevismo e o marxismo, Trotsky argumentou que as épocas reacionárias “não só desintegram e debilitam a classe operária e sua vanguarda, como também rebaixam o nível ideológico geral do movimento e retrocedem o pensamento político a etapas já amplamente superadas”. E definia como a tarefa mais importante da vanguarda “não deixar-se ser arrastrado pelo fluxo regressivo, mas sim nadar contra a corrente” e “agarrar-se a suas posições ideológicas”. Ainda que, seguramente, os ingênuos possibilistas confundiriam esta política com “sectarismo”, apelando ã experiência histórica do bolchevismo em momentos de reação, Trotsky concluía que era “a única maneira de preparar um novo e enorme avanço quando se produzisse o seguinte ascenso da maré histórica” [8].

Se observarmos as conseqüências da ofensiva neoliberal, veremos que, efetivamente, o “pensamento político”, inclusive daqueles que se reivindicam marxistas, retrocedeu a etapas já superadas: desde o retorno de um tipo de neoberstenianismo, até as utopias libertárias e autonomistas, elas pretendem apresentar-se como grandes novidades.

Uma parte importante das organizações da esquerda de origem trotskista não souberam “agarrar-se” ás posições ideológicas e estratégicas, como mostra, por exemplo, a renúncia da Liga Comunista Revolucionária a lutar pela ditadura do proletariado.

Depois de um retrocesso sustentado de ao menos 30 anos de ataques neoliberais a realidade mudou. Para pegar uma data emblemática, esta mudança começou lenta, mas sustentadamente em 1995 com a greve dos trabalhadores dos serviços na França, que atuou como um ponto de inflexão e como o começo de uma renovada resistência operária ã ofensiva patronal.

Logo em seguida, veio o surgimento do movimento antiglobalização com as mobilizações em Seattle, de 1999 e, posteriormente, o movimento contra a guerra imperialista no Iraque.

Na América Latina se aprofundou a tendência ã ação direta e aos levantamentos populares (Argentina em 2001, Bolívia em 2003, Equador, etc.) que acabaram derrubando alguns dos governos neoliberais, dando lugar a uma alteração governamental e ao ressurgimento de tendências populistas.

O crescimento econômico dos últimos quatro anos fortaleceu as fileiras operárias desde o ponto de vista social, com a incorporação de milhões de novos trabalhadores jovens ã força de trabalho e também do ponto de vista da luta reivindicativa, dando lugar, em muitos casos, ao surgimento de processos de reorganização ou ã prática de métodos de luta radicalizados.

No entanto, essa recuperação também favoreceu ao desenvolvimento de tendências reformistas, tornando muito mais contraditória e complexa a perspectiva da constituição da classe operária, enquanto sujeito político hegemônico de um projeto emancipador e sua expressão mais consciente na organização de partidos operários marxistas com forte inserção no proletariado.

Isso se torna evidente pela inexistência de tendências ã independência de classe de setores significativos do movimento operário.

O outro grande fenômeno político atuante, além da volta ã cena de lutas operárias, é a crise dos chamados “partidos operário-burgueses” – principalmente o SPD alemão, o PS francês, o Labour Party britânico, os Partidos Comunistas da Itália e da França e o PT do Brasil–, quer dizer, os partidos operários reformistas majoritariamente fundados no fim do século XIX e princípios do século XX (a exceção do PT brasileiro que foi um fenômeno tardio), que foram a direção histórica do movimento operário, compartilhada com o nacionalismo burguês em diversos países da periferia capitalista.

A crise desses partidos corresponde ao fato de terem se tornado os agentes da ofensiva neoliberal, transformando-se em partidos sociais liberais, o que os distanciou totalmente de sua base eleitoral tradicionalmente operária.

Neste marco mais geral é que se-faz, há alguns anos, uma discussão, primeiro na extrema esquerda européia, sobre a construção de “partidos anticapitalistas amplos”, política que levou ã fundação do Scottish Socialist Party em 1998, o Bloco de Esquerda em Portugal em 1999, o Partido da Esquerda na Suécia, a Aliança Vermelha-Verde na Dinamarca (esses dois últimos no início dos 1990), a Socialist Alliance e o RESPECT em 2004 na Grã Bretanha. A LCR francesa, por sua vez, lançou um chamado a se conformar um partido anticapitalista [9]. Parte deste mesmo processo foi a participação de todas as tendências trotskistas italianas durante mais de dez anos no Rifondazione Comunista na Itália, e mais recentemente a fundação do Die Linke (A Esquerda) na Alemanha [10]. Ainda que estes não sejam projetos impulsionados desde os grupos da extrema esquerda, mas sim processos objetivos, produto de rupturas da socialdemocracia, no caso do Die Linke ou do ex-PCI no do Rifondazione.

Posteriormente, esta política também foi adotada pela esquerda da América Latina. No Brasil com a fundação do PSOL, a partir da ruptura de um setor da esquerda petista com o PT e da reivindicação do PSUV (o partido chavista) na Venezuela; na Argentina, a expressão desses projetos “amplos” é a “Nueva Izquierda”, impulsionada pelo Movimiento Socialista de Trabajadores (MST), que girou decididamente ã centro-esquerda e tenta confluir com setores peronistas dissidentes, agrupados no Proyecto Sur. A direção do MST nem sequer se preocupa com as formas e coloca abertamente que é necessário “conformar um espaço nacional e popular” e que um “progressismo radicalizado” em um movimento comum “seria superador”, inclusive programaticamente (sic), ã toda experiência da esquerda trotskista dos últimos anos [11]. Esta mesma lógica política foi a que levou o MST e seus simpatizantes na Venezuela a diluirem-se no chavismo [12].

Esses projetos, nos quais convivem reformistas e revolucionários e que carecem absolutamente de uma clara definição de classe, constituindo ou partidos pequeno-burgueses ou alianças de frente popular – ou simplesmente o ingresso a um partido nacionalista burguês como o de Chávez–, foram adotados para capitalizar, de forma oportunista, um espaço gerado pelo giro ao neoliberalismo do reformismo tradicional, cuja expressão é essencialmente eleitoral e que não se apóia em processos de radicalização política.

A lenta recuperação da classe operária e o surgimento de governos de centro-esquerda “pós-neoliberais” se encontraram com muitas destas correntes capitulando, como o caso extremo da DS no Brasil que diretamente participou com um ministro no governo capitalista de Lula, ou a sua versão “antineoliberal”, o PSOL, votando no parlamento a chamada Lei do “Supersimples”, que antecipava a reforma trabalhista a favor da pequena e média patronal. O outro grande “modelo” de partido amplo anticapitalista, o Rifondazione Comunista, que mereceu os elogios e o apoio dos grupos da esquerda trotskista na Itália durante mais de uma década [13], acabou entrando no governo de Prodi e sustentando as políticas antioperárias e imperialistas, como a permanência das tropas italianas no Afeganistão ou, mais recentemente, a crise terminal da aliança do RESPECT.

Acredidamos que após mais de dez anos de começada essa experiência e com a crise que hoje atinge a várias dessas agrupações, é necessário fazer um balanço crítico dessas iniciativas.

Neste artigo, abordaremos a polêmica com a Liga Comunista Revolucionária da França e com o Socialist Workers Party da Grã Bretanha, que se encontram entre os principais impulsionadores desses projetos de “partidos amplos anticapitalistas”. Em ambos os casos, apesar de suas diferenças, cremos que a elevação ao plano teórico da constituição de organizações sem delimitação estratégica nem de classe tem estreita relação com o abandono de uma estratégia conseqüentemente revolucionária.

Sem hipótese de revolução. O debate na LCR

As hipóteses estratégicas

Em um artigo recente [14], o intelectual marxista e dirigente da LCR francesa, Daniel Bensaïd, se refere graficamente ao efeito sobre as fileiras do marxismo do retrocesso contínuo do movimento operário internacional dos últimos trinta anos, como o “grau zero da estratégia”, quer dizer, o desaparecimento das polêmicas e lutas políticas entre as correntes da extrema esquerda em torno de problemas cruciais como a auto-organização, o foquismo, a participação ou não dos revolucionários em governos de frente popular, entre outras.

Se o Maio Francês de 1968, o Outono Quente italiano de 1969, a Revolução Portuguesa de 1974, e, no mundo semicolonial, a guerra do Vietnã e os processos revolucionários dos primeiros anos ‘70’, como o do Chile, haviam atualizado o debate sobre as estratégias para a tomada do poder – entre aqueles que se baseavam na classe operária e na greve geral insurrecional e nos partidários da guerrilha, o foquismo ou a chamada “guerra popular prolongada” –, a derrota destas tentativas extinguiu de vez o debate estratégico, não porque alguma das duas grandes estratégias em vigência houvesse se imposto ou demonstrado superioridade, mas porque ambas foram aplastadas pela contra-revolução ou desviadas por mecanismos democrático-burgueses [15].

Esquematicamente, como disse Bensaïd em seu artigo, desde o segunda pós-guerra se enfrentaram duas grandes “hipóteses estratégicas”: Uma hipótese é a que denomina por “greve geral insurrecional”, que, ainda que de forma um pouco imprecisa ou simplificada, faz referência ã estratégia da revolução sobre o “modelo”da Revolução Russa de outubro de 1917, ou seja, uma revolução encabeçada pela classe operária em aliança com as classes subalternas, com hegemonia dos centros urbanos sobre o campo, que estabelece a ditadura do proletariado baseada em soviets ou conselhos de operários e camponeses, como organismos de autodeterminação, que se apropria do poder por meio de uma insurreição armada, dirigida por um partido marxista revolucionário.

A outra, que se baseava essencialmente no campesinato e em direções pequeno-burguesas, em geral populistas ou variantes de stalinismos nacionais, cujo método era a guerra de guerrilhas e sua estratégia a colaboração de classes com setores das “burguesias nacionais”, como por exemplo o “bloco das quatro classes” de Mao Tsé Tung ou os governos “democráticos” do Vietnã ou Cuba que antecederam a expropriação e nacionalização dos meios de produção. A teoria do foco de Che Guevara era parte desta estratégia guerrilheira no sentido de uma revolução realizada não pela insurreição de massas, mas por um partido-exército, porém seu objetivo era a revolução socialista, ou seja, a expropriação e nacionalização dos meios de produção e não a aliança com a “burguesia nacional” [16].

Para completar o quadro de debate estratégico, além destas duas grandes hipóteses de surgimento de duplo poder que aponta Bensaïd – a guerra popular prolongada e a greve geral insurrecional – existem outras duas estratégias surgidas das fileiras dos explorados [17]:

Uma que poderíamos chamar “gradualista”, adotada em princípios do século XX pelos partidos da II Internacional, primeiro como uma suposta via evolutiva em direção ao socialismo e logo como forma de gerir o estado capitalista, dando lugar ao reformismo baseado no sindicalismo e no parlamentarismo como métodos para conseguir melhoras parciais. Este continua sendo o principal fenômeno político que abarca não só aos partidos reformistas tradicionais – socialdemocratas, stalinistas, trabalhistas –, mas também as burocracias que dirigem os sindicatos, através dos quais transmite-se a ideologia burguesa ã amplas massas de assalariados. Apesar de não existirem condições, como as do boom do pós-guerra, que permitam obter reformas duradouras, o reformismo persiste na ilusão dos explorados de conseguir suas aspirações mediante a pressão sobre as instituições capitalistas.

A quarta estratégia está compreendida pelo autonomismo e remanecentes do anarquismo, ao que Bensaïd corretamente chama de “ilusão do social”, justamente por afirmar a “imanência” do político no social. Na realidade, ao negar a mediação político-estatal e a necessidade de que os oprimidos destruam o poder burguês e construam seu próprio Estado baseado em organismos de autodeterminação de massas, é em si mesma uma negação da estratégia que propõe simplesmente o “êxodo” no lugar do enfrentamento e derrocada das classes possuidoras e seus Estados. No terreno das idéias, estas correntes recriam certas utopias pré-capitalistas que em muitos aspectos remontam ao próprio Proudhon, como a reivindicação da produção em pequena escala e a organização comunal. Politicamente, estas ideologias libertárias que expressaram com maior clareza o rechaço ã construção de toda organização política revolucionária e ã necessidade da ditadura do proletariado como sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo, acabaram adaptando-se a algumas das variantes do regime político burguês.

Nos últimos anos, estas tendências autonomistas tiveram seu momento de auge com o ascenso do movimento altermundialista, constituindo-se essencialmente por jovens de classe média, e em medida muito menor, em setores sindicalistas combativos [18].

As conseqüências do fim da Segunda Guerra e o deslocamento da revolução dos centros para a periferia capitalista fez com que a variante histórica de revoluções anticoloniais com base essencialmente camponesa e direções não revolucionárias tenha sido o acontecimento mais comum. Em alguns casos, como os que mencionamos acima, acabaram estabelecendo Estados operários profundamente burocratizados [19]. Em outros, como no caso da Argélia ou da Nicarágua, não se avançou na destruição das relações capitalistas. A generalização destes tipos de revoluções impactou as fileiras do trotskismo do pós-guerra, ao ponto de, por exemplo, Nahuel Moreno chegar a conclusão de que esta hipótese, de que Trotsky havia considerado excepcional, havia se transformado na “norma” das revoluções do século XX [20].

Enquanto a estratégia da revolução operária foi muito mais débil no último ascenso que culminou em meados dos ‘70, as hipóteses foquistas ou de guerra popular prolongada tiveram uma importante responsabilidade na derrota de alguns processos, ou derivaramao estabelecimento de Estados operários profundamente deformados, como no caso do Vietnã, que ao levar ao poder uma variante do stalinismo nacional, impediu de transformar a derrota do imperialismo em uma vitória estratégica da classe operária mundial.

Ainda que, a partir do enfrentamento entre “greve geral insurrecional” e “guerra popular prolongada”, Bensaïd pretenda fazer uma síntese de como foram os processos revolucionários no século XX, em nenhum momento acrescenta que não se tratava de duas estratégias igualmente válidas para a tomada do poder.

No debate estratégico não se pode ignorar que a LCR na França construiu-se sobre a hipótese da “greve geral insurrecional”, mas combinando elementos de “guevarismo”; o Secretariado Unificado daQuarta Internacional (SU) não só havia reivindicado a direção de Ho Chi Minh durante a guerra do Vietnã [21] mas também na América Latina, optou por uma estratégia camponesa de “guerra popular” ou foquismo que de nenhuma maneira conduzia ã instauração de Estados operários baseados em organismos de autodeterminação de massas. Por exemplo, na Argentina, a seção oficial do SU durante alguns anos foi o PRT de Santucho, que tinha uma estratégia de colaboração de classes [22]. Na Nicarágua, o SU reivindicava a Frente Sandinista que tinha diretamente uma política burguesa de economia mista. Seu triunfo sobre a ditadura de Somoza nem sequer culminou na expropriação dos capitalistas e acabou entregando o poder a Violeta Chamorro através das eleições.

Esta discussão não é menor. Depois de três décadas de profundo retrocesso, a revolução social como alternativa ao sistema capitalista, e em particular a hipótese da “greve geral insurrecional”, têm sido profundamente questionadas e extintas dos debates estratégicos, não só da intelectualidade (pós)marxista, mas também das próprias organizações da esquerda marxista, que tomaram como a “revolução possível” o regime chavista na Venezuela ou o governo de Evo Morales na Bolívia. No mesmo sentido, vem a reivindicação que a LCR vem fazendo de Che Guevara, tratando de demonstrar a “atualidade” do guevarismo para a “renovação” do socialismo do século XXI, coincidindo com seu chamado a constituir um novo partido anticapitalista.

Entretanto, no “debate estratégico” aberto na LCR, todas as tendências [23] e opiniões em jogo compartilham um denominador comum: a vigência de que a “hipótese da greve geral insurrecional” está terminada, quer dizer, que chegou ao seu fim a “era da revolução de outubro”. Por sua vez, a “guerra popular prolongada”, encarnada por organizações ultraesquerdistas como a Fração do Exército Vermelho na Alemanha ou as Brigadas Vermelhas na Itália, demonstrou ser impotente nos países capitalistas avançados. Se antes a LCR oscilava entre duas “hipóteses” de revolução armada – uma insurrecional e outra guerrilheira – acredita que agora, ao considerá-las obsoletas, está resolvendo este “dilema” deslizando-se a uma estratégia eleitoral e parlamentar na qual desapareceu a perspectiva não só da catástrofe econômica e social nos países centrais, mas também da irrupção violenta do proletariado e das classes subalternas. Só assim se explica a “ilusão” na democracia burguesa, apesar de não contar sequer com um modesto bloco parlamentar, diferente, por exemplo, da socialdemocracia alemã que eleição atrás de eleição aumenta sua representação no parlamento, o que reforçava sua estratégia reformista.

A direção da LCR considera imprevisíveis as formas de emergência e as características de duplo poder (a hipótese estratégica), no entanto, o único que lhe parece correto e desejável é que as instituições do regime democrático burguês cumpram um papel central na emergência deste duplo poder.

A “democracia até o final” é… a ditadura da burguesia

É um fato conhecido que a LCR decidiu em um congresso em 2003 eliminar de seu programa a menção ã ditadura do proletariado, alegando questões lingüísticas, dado que o termo “ditadura”, por conta da grande quantidade dos regimes ditatoriais e totalitários que existiram no século XX, estava associado a um sistema repressivo e autoritário. Em um artigo anterior [24] debatemos contra esta posição, tratando de demonstrar que, na verdade, não se trata de um problema “formal” ou nominal, mas sim que o significado profundo deste giro programático é a substituição da luta pela destruição do Estado burguês e a constituição de um Estado operário soviético, por uma estratégia “democrática radical”, que supõe como hipótese que a revolução nos países avançados, para além da forma que tome e dos acontecimentos que a desencadeiem, inevitavelmente implicará num grau de continuidade com as instituições atualmente existentes da democracia burguesa, notavelmente o parlamento. Não casualmente, essa mudança estratégica foi comparada com o giro eurocomunista dos partidos stalinistas ocidentais de meados da década de 1970.

Nesse sentido, por exemplo, A. Artous diz que “ao menos em países como os da Europa do Oeste (e também em outros países), não se pode pensar que o novo poder surgirá de forma completamente desligada de certas instituições políticas existentes, em particular, assembléias eleitas sobre a base do sufrágio universal. Esta é a razão pela qual, desde agora, deve-se travar uma batalha por sua democratização radical” [25]. Bensaïd também resgata o papel que desde sua ótica cumprirá o “sufrágio universal” nos países de “tradição parlamentar mais que centenária”.

As discussões sobre a sociedade de transição e a revisão sobre o balanço da stalinização da ex-URSS confirmam que não se trata de uma questão de conveniência terminológica. O ajuste programático não se refere somente ao regime político, mas atinge as formas de propriedade e as bases mesmas do Estado transicional. O sistema de “dupla representação”, ou seja, a coexistência de um regime soviético com uma câmara parlamentar, que em última instância decidiria pelo sufrágio universal em situações de exceção, é a expressão política de um tipo de cooperativismo com o qual a LCR espera expurgar o perigo de burocratização de uma futura sociedade póscapitalista [26].

O exemplo que dá Bensaïd sobre o surgimento do “duplo poder” no interior das instituições burguesas é o orçamento participativo de Porto Alegre, no qual se vê uma “dialética” entre o governo municipal eleito pelo sufrágio universal e os “comitês” que discutem as designações pressupostas [27].

Evidentemente a “dialética” entre o município de Porto Alegre e o “orçamento participativo” terminava na gestão do Estado e da economia capitalista.

A proposta de “combinar” dois sistemas, o republicano burguês e o soviético, não constitui tão pouco nenhuma novidade, foi uma velha idéia de Hilferding e dos dirigentes do Partido Socialdemocrata Independente na revolução operária da Alemanha em 1919, após a queda do Kaiser, com a qual buscavam dar um caráter constitucional aos conselhos de operários e soldados que haviam surgido no curso da revolução, integrando-os ã República deWeimar, tentando assim unir “a ditadura proletária com a ditadura da burguesia sob o signo da constituição” [28].

Com isso queremos dizer que a fascinação com as possibilidades que a democracia burguesa oferece é tão velha como as organizações de massas do movimento operário. Foi essa a via política de adaptação da socialdemocracia alemã no início do século passado.

A ala revisionista de Bernstein acreditara ter encontrado na democracia parlamentar uma forma “civilizada”de governo que havia superado o despotismo das ditaduras de classe. Logo foi demonstrado que esta concepção era compartilhada com a ala “ortodoxa”. Kautsky foi o autor do giro estratégico sintetizado na famosa distinção entre “guerra de desgaste” e “guerra de assalto”. Segundo Kautsky, a classe operária alemã, pelas posições conquistadas, estava em condições de levar adiante a “guerra de desgate”, ou seja, de carcomer desde o interior o regime burguês. As instituições mais adequadas para desenvolver essa estratégia eram os sindicatos e o parlamento. Discutindo contra Pannekoek e Rosa Luxemburgo dizia que “o objetivo de nossa luta política continua sendo o mesmo: a conquista do poder de Estado pela obtenção de uma maioria no parlamento e o ascenso do parlamento ao domínio do governo. De nenhuma maneira perseguimos a destruição do poder do Estado” [29].

Contra esta visão evolutiva, Pannekoek insistia que havia uma relação inversa entre a fortaleza do proletariado e a impotência da fração parlamentar da socialdemocracia. Quase que simultaneamente, ainda que sem intervir no debate da socialdemocracia alemã, Lenin colocava em seu artigo Marxismo e revisionismo uma política de fato oposta ã de Kautsky, dizendo que “o parlamentarismo não elimina, mas que expõe absolutamente o caráter intrínseco das repúblicas burguesas mais democráticas enquanto organismos de opressão de classe”. Por sua vez, apontava uma “dialética” interna entre o parlamentarismo e a democracia burguesa, que quando se permitia uma participação das massas oprimidas, que antes eram excluídas, nos acontecimentos políticos, seu resultado não era o amortecimento das crise, mas sim o agudizamento dos choques de classes em momentos de revolução. Para Lenin, “quem não compreende a inevitável dialética interna do parlamentarismo e da democracia burguesa – que leva a solucionar a disputa pela violência de massas de um modo, todavia mais taxativo que em tempos anteriores – jamais poderá, baseando-se nesse parlamentarismo, realizar uma propaganda e agitação conseqüente e principista que prepare realmente as massas operárias para uma participação vitoriosa em tais ‘disputas’”. O exemplo desta falta de preparação em uma etapa parlamentar são as alianças ou blocos eleitorais com setores reformistas ou liberais que “ao se unir os elementos combativos com os elementos menos capazes de lutar, com os mais vacilantes e traidores, somente atrasam a conciência das massas, e não reforçam, mas debilitam a importância real de sua luta”. Sua expressão extrema é o “ministerialismo”, ou seja, a participação direta em governos burgueses.

Esta dialética de que falava Lenin e, em um sentido similar também Pannekoek, acabou se impondo com toda sua força na Alemanha. O final é conhecido. Na realidade, a suposta “estratégia de desgaste” de Kautsky acabou minando a capacidade revolucionária da socialdemocracia e do proletariado alemão, arrastando-o de derrota em derrota: a socialdemocracia demonstrou que não era um partido construído para a luta de classes. Diante da iminência da Primeira Guerra Mundial, não só não organizou a greve geral de massas, como seu bloco parlamentar inteiro, com a exceção de Liebcknek, votou os créditos de guerra de que necessitava o Estado alemão para participar da carnificina imperialista. A outra grande catástrofe de igual ou maior magnitude foi o ascenso do nazismo. Anos depois, W. Benjamin concluiu que: “O conformismo, que desde o princípio esteve como em sua casa na socialdemocracia, não se apega somente ã sua tática política, mas além disso, a suas concepções econômicas. Ele é uma das causas do desmoronamento ulterior. Nada corrompeu tanto os operários alemães como a opinião de que estão nadando com a corrente” [30].

Artous tenta evitar a crítica, perguntando-se sem responder, se esta “radicalização da democracia” que estão propondo não é similar ao que propunham os austromarxistas na década de 1920 e ao eurocomunismo. Salvo as diferenças entre a LCR e o reformismo operário tradicional como o da II Internacional – que esperava em um momento de fortaleza social e política do proletariado alcançar o socialismo por meios pacíficos e evolutivos – a certeza que manifestam os dirigentes da LCR no papel que cumprirá a democracia burguesa, transformando seus mecanismos como o sufrágio universal ou a assembléia geral num princípio abstrato, torna inevitável a comparação.

Os dirigentes da LCR atuam como se o século XX tivesse transcorrido em vão. Inclusive em países de tradição democrática, em circunstâncias de crise econômica, de ascenso da luta de classes, ou de alguma situação de “crise nacional” aguda que rompa o consenso entre as classes fundamentais e empurre a classe operária e os setores subalternos para a luta revolucionária, a democracia burguesa se degrada em bonapartismo, sua base social tradicional, as classes médias urbanas, perdem a confiança em seus mecanismos, voltando-se para as variantes para impôr a ordem, facilitando assim a contrarevolução aberta com a instauração de regimes fascistas (ou brutais ditaduras como as que vimos na América Latina). Essa foi a tragédia do proletariado alemão que não soube combater com métodos revolucionários o ascenso do nazismo. Inclusive em momentos “normais” e dentro dos mecanismos clássicos da democracia parlamentar, isso se antecipa por exemplo no voto a variantes populistas de direita, como o próprio Le Pen na França ou a bonapartização do regime norteamericano após os atentados do 11 de setembro.

Poderíamos dizer que mais do que “órfã de estratégia” a LCR parece haver se transformado na filha adotiva da estratégia reformista da II Internacional.

Sobre o governo operário

No ponto anterior, nos referimos a uma das principais discussões estratégicas que atravessam hoje a LCR: a questão de que, nos países capitalistas avançados, o duplo poder não pode emergir como algo “exterior” ás instituições políticas existentes.

A outra grande discussão que corresponderia a este momento, em que prima a “guerra de posições”, é a participação ou não dos “revolucionários” em governos (burgueses) progressistas encabeçados por partidos operários reformistas ou social liberais, e ligada a esta discussão, as vias táticas para capitalizar um espaço essencialmente eleitoral de setores descontentes com os partidos reformistas tradicionais.

A significação que tem hoje a discussão sobre a táctica de “governo operário” parece responder ao que seria o umbral mínimo para que uma organização revolucionária participe de instituições governamentais da burguesia.

Bensaïd recorre ã discussão que aconteceu na III Internacional em 1921 a propósito da proposta ao KPD de integrar-se ao governo da Saxônia, no qual tinham maioria os socialdemocratas e comunistas.

Segundo Bensaïd, a discussão nesse momento acabou de forma ambígua, com alguns como Zinoviev confundindo o governo operário com a ditadura do proletariado, e portanto, fazendo exigências desmedidas para uma formação governamental transitória.

Para o dirigente da LCR hoje, as condições para que uma organização revolucionária participe de um “governo operário” devem ser muito mais modestas. Estas seriam: “a) que tal participação se coloque em uma situação de crise ou ao menos de aumento significativo da mobilização social, e não em frio; b) que o governo em questão tenha se empenhado em iniciar uma dinâmica de ruptura com a ordem estabelecida (por exemplo – mais modestamente que o armamento exigido por Zinoviev – reforma agrária radical, “incursões despóticas” no domínio da propriedade privada, a abolição dos privilégios fiscais, a ruptura com as instituições – da V República na França, os tratados europeus, os pactos militares, etc.); c) e finalmente, que a relação de força permita aos revolucionários, se não de garantir o cumprimento dos compromissos, ao menos de fazer pagar um forte preço frente a possíveis descumprimentos” [31].

Tais fundamentos da LCR mais que darem um conteúdo atual ã discussão colocada pela III Internacional, só parecem justificar a política capituladora ante o governo de Lula e a adaptação – que é patrimônio de praticamente toda a esquerda – ao governo de Chávez.

Para dizer a verdade, o debate na III Internacional teve uma resolução precisa sobre a consigna de “governo operário” como conclusão lógica da tática de frente única, que vinha sendo um dos debates centrais, que respondia ao problema da relativa marginalidade dos partidos comunistas ocidentais em relação ao movimento de massas em uma situação na qual havia retrocedido a onda revolucionária.

Em seu “Informe sobre o Quarto Congresso da IC”, no X Congresso dos Soviets em dezembro de 1922, Trotsky explicava que a importância da política de “governo operário” não estava tanto nas possibilidades de sua realização, mas sim que “opõe politicamente a classe operária de conjunto a todas as outras classes, ou seja, a todos os agrupamentos do mundo político burguês.” Por isso, o diálogo que a Internacional Comunista colocava como apropriado para abrir com as massas operárias que não compartilham o objetivo estratégico da revolução socialista era:

“Operários socialistas, sindicalistas, anarquistas e operários sem partido! Se rebaixam os salários, cada vez sobra menos da jornada de 8 horas; o custo de vida está nas nuvens. Estas coisas não ocorreriam se os operários, apesar de suas diferenças, pudessem se unir e instalar seu próprio governo operário”.

E quanto ã participação do partido alemão, o KPD, no “governo operário” da Saxônia, a direção da III Internacional aconselhava que “se vocês, nossos camaradas comunistas alemães, pensam que é possível uma revolução nos próximos meses na Alemanha, então os aconselhamos a participarem na Saxônia de um governo de coalizão e utilizarem seus postos ministeriais para promoverem as tarefas políticas e organizativas e transformar Saxônia, num certo sentido, em uma semeadora comunista, de modo a ter um bastião revolucionário num período de preparação para o próximo estalar da revolução.Mas isso só seria possível se a pressão da revolução já se fizesse sentir, só se já estivesse ao alcance da mão (…)Mas neste momento vocês cumprirão, na Saxônia, o papel de um apêndice, de um apêndice impotente porque mesmo o governo saxão é impotente frente a Berlim e Berlim tem um governo burguês.” [32]

Ou seja, a consigna de “governo operário” tinha um sentido preciso e era um diálogo que ajudava setores do proletariado a avançar e a enfrentar o conjunto do regime burguês. Do mesmo modo, a participação em um governo operário reformista – local no caso da Saxônia – só poderia ser uma breve transição para a organização da tomada do poder, do contrário, não seria mais que a gestão operária do Estado capitalista. Posteriormente, no Programa de Transição, essa consigna toma dois sentidos precisos: como popularização da ditadura do proletariado ou como tática específica para desmascarar as velhas direções aliadas ã burguesia, ou seja, tinha um conteúdo inconfundivelmente anticapitalista e antiburguês.

Evidentemente, esta conclusão do debate da III Internacional não tem nada a ver com a discussão da LCR na França em torno da “gestão municipal” ou a participação em governos locais – com a única exigência de que não sejam compartilhados com o PS – tomando como modelo a experiência do orçamento participativo de Porto Alegre. Ainda que, com essa formulação, Bensaïd parecera admitir que foi um erro político a participação de Rossetto da DS como ministro agrário do governo burguês de Lula, não diz que o “ministerialismo” foi a conclusão lógica do “municipalismo”, quer dizer, da gestão do governo de Porto Alegre como parte da esquerda do PT, ou seja, nunca houve uma verdadeira autocrítica da política oportunista que levou a integrar o governo de Lula. [33]

Mais uma vez sobre a ditadura do proletariado

Na famosa carta a seu amigo JosephWeydemeyer,Marx dizia, em escassas linhas, que o que havia constituído seu aporte original não era sobre a existência das classes, mas que “a luta de classes conduz, necessariamente, ã ditadura do proletariado” e que esta é em si mesma o “trânsito em direção ã abolição de todas as classes e a uma sociedade sem classes” [34].

Para os marxistas, não existe a “democracia” em geral, mas como forma política de um Estado que serve ao domínio de uma classe. Portanto, a “democracia burguesa”, inclusive “até o final”, supondo que pode chegar a significar um regime com uma maioria parlamentar de partidos operários, continua sendo a “melhor máscara” da brutal e despótica ditadura do capital.

Com isso, não estamos dizendo nada novo, mas atualizando, com a história do século XX a nosso favor, o que já discutiam os bolcheviques contra Kautsky, Hilferding e outros críticos do regime soviético. Como dizia Lenin, “o que tem de comum entre a ditadura do proletariado e a ditadura das outras classes é que está motivada, como toda outra ditadura, pela necessidade de aplastar pela força a resistência da classe que perde a dominação política.”, o que a diferencia é que “é o aplastamento pela violência da resistência que oferecem os exploradores, quer dizer, a minoria ínfima da população, os latifundiários e os capitalistas” [35].

A conseqüência política da ditadura do proletariado é, segundo Lenin, uma alteração das instituições da democracia de modo a permitir seu “gozo efetivo” ã grande maioria oprimida e explorada pelo capitalismo. Daí que a democracia soviética como forma política da ditadura do proletariado não seja compatível com as formas políticas parlamentares do domínio burguês. Mas também implicava na luta mais decidida contra a reação burguesa, que só poderia aumentar ao se ver privada do poder e de sua propriedade, cuja base, além do capital internacional, estava na “força do costume, na força da pequena produção” que “engendra ao capitalismo e ã burguesia constantemente, a cada dia, a cada hora, por um processo espontâneo e de massa” [36].

Se, como dizia Trotsky discutindo contra Kautsky, “quem deseja o fim não pode rechaçar os meios”, o abandono da ditadura do proletariado significa abandonar a estratégia da revolução socialista e o ponto de vista da classe operária a favor da “ilusão democrática” própria das classes médias ilustradas – que alimentam a esperança de amortecer as contradições sociais e, em última instância, o choque inevitável entre a revolução e a contrarevolução, por meio do sufrágio universal e das instituições da democracia parlamentar.

Por último, a LCR supõe que somente pelo fato da ditadura do proletariado ser um domínio de classe, teria implicações autoritárias que não se limitariam ã repressão das anteriores classes possuidoras, ou ã necessidade de um regime de exceção para enfrentar o ataque da contrarrevolução, como ocorreu na Rússia durante a guerra civil. Em grande medida, faz-se eco de um balanço que transformou-se em senso comum, sobre a inevitabilidade da burocratização da União Soviética – e em última instância, de toda revolução operária – dada pela nacionalização e concentração dos principais meios de produção, o que a LCR chama, erroneamente, de “despotismo de fábrica”.

Em sua análise ressalta as características dos países avançados para fundamentar uma maior continuidade das formas da democracia burguesa como “antídoto” contra a burocratização e o suposto “corporativismo” da democracia soviética e não para pensar nas enormes vantagens que implicariam se o proletariado tomasse o poder em um ou vários países centrais. Como dizia Trotsky, a amplitude e a profundidade da democracia operária estão determinadas historicamente, “quanto mais Estados tomem o caminho da revolução socialista, tanto mais livres e flexíveis serão as formas assumidas pela ditadura, tanto mais aberta e avançada será a democracia operária” [37].

O chamado a um novo partido anticapitalista

A “um novo período, um novo partido”?

O debate sobre o projeto de construir um partido “mais amplo” que a LCR tornou-se público nas eleições presidenciais na França, nas quais um setor importante da direção da LCR se pronunciou por apresentar uma candidatura única do espaço “antineoliberal”, em base ao amplo setor político que havia votado pelo “Não” no referendo sobre o Tratado Constitucional da União Européia. Esta “frente heterogênea” do voto “Não” abarcava a chamada “esquerda antiliberal”: uma ala minoritária do PS (ainda que sua base majoritariamente tenha votado Não), o Partido Comunista, ativistas do movimento altermundialista, ecologistas, o dirigente dos produtores rurais José Bové e a extrema esquerda. Este setor da LCR, ainda que tenha saído derrotado na sua política de candidatura única, se negou a fazer campanha pelo candidato da Liga, Olivier Besancenot [38].

Os resultados eleitorais que favoreceram a LCR e deixaram exposto o nível de crise do resto das formações “antiliberais”, principalmente do PCF, fizeram retroceder a influência deste projeto abertamente liquidacionista.

O início da resistência ás medidas antipopulares do governo de Sarkozy por parte de trabalhadores do transporte e de estudantes universitários colocou novamente em discussão a necessidade de que estas lutas e movimentos sociais encontrem uma representação política em uma oposição ao governo organizada.

A proposta oficial da direção da LCR que porá em discussão em seu congresso, a realizar-se nos próximos meses, é o chamado ã fundação de um “novo partido anticapitalista, ecologista, feminista e internacionalista”. Este giro a uma posição mais matizada causou um certo entusiasmo nos setores mais de esquerda da LCR que vêem que, desta forma, a formação do “novo partido” implicará simplesmente em ampliar a base da Liga, mantendo seu caráter de extrema esquerda. No entanto, o chamado é suficientemente ambíguo e indeterminado para terminar confluindo com setores “antineoliberais” em um partido sem nenhum conteúdo revolucionário nem de classe [39].

A discussão sobre o caráter do “novo partido amplo” tem importantes conseqüências programáticas. Francis Sitel, que pertence ao setor da LCR que defende abertamente a confluência com reformistas em uma mesma organização, em sua contribuição para o debate estratégico afirma que, como produto da ofensiva neoliberal, “as reformas e a revolução” não se apresentam como dois pólos de uma alternativa, mas sim como uma dupla que se deve pôr em movimento: quaisquer que sejam as fórmulas utilizadas – ‘a revolução para defender as reformas ontem impostas’, ou a exigência de ‘reformas para desatar a dinâmica revolucionária’... – a idéia aparece amplamente compartida. Podemos considerar que um ‘partido amplo’ se definirá como um partido de reformas, e que em seu seio a revolução será defendida como uma opção, sem dúvida em primeiro momento minoritária.

Quanto ao governo no qual este poderia participar, se definiria sem dúvida como ‘reformista’ no sentido em que estaria determinado a levar tais reformas, consciente de que elas conduzirão a um enfrentamento com o capitalismo” [40]. Esta adequação a um programa mínimo, reformista, responderia supostamente a um período histórico no qual a revolução está “mais longe de nosso horizonte”. Em sua resposta a esta política, Bensaïd se limita a assinalar que ainda que Sitel possa ter razão, não se deve se antecipar a “inventar entre nós o programa mínimo (de reformas) para um ‘partido amplo’ hipotético”. Para Bensaïd seria suficiente, para superar a separação entre programa mínimo e máximo, defender que o “antiliberalismo” conseqüente desemboca no “anticapitalismo”. Mas isso não está certo, já que há setores burgueses e pequeno-burgueses que se reivindicam no campo do “antiliberalismo”, mas cujos programas se opõem pelo vértice aos interesses da classe operária. Inclusive a mesma definição de “anticapitalismo” é também ambígua, já que pode englobar tanto os marxistas revolucionários como os anarquistas, autonomistas e críticos românticos do capitalismo, quer dizer, correntes opostas à luta pelo objetivo “máximo” da tomada do poder político pelos trabalhadores e da construção do socialismo.

Ainda que Bensaïd sustente que “Há, na realidade, entre os protagonistas da controvérsia da Critique communiste, convergência sobre o corpus programático inspirado do A catástrofe iminente ou do Programa de Transição”, a verdade é que a afirmação de que se chega ã revolução lutando conseqüentemente por reformas não é o método que propõe Trotsky no programa fundacional da IV Internacional para superar a brecha existente entre as condições objetivas para a revolução e o atraso na consciência das massas. Pelo contrário, este programa busca constituir, por meio de um sistema de reivindicações transitórias (que combina demandas mínimas e democráticas com demandas transitórias ao socialismo), uma ponte entre as reivindicações atuais e o programa socialista da revolução.

Bensaïd expõe como exemplo do que seria uma política correta para um “partido amplo” a experiência da seção brasileira do Secretariado Unificado, dizendo que “participamos na formação do PT (para construí-lo, e não na ótica da tática entrista) e seguimos defendendo nossas posições”, além de outros casos como o da Itália ou de Portugal. No entanto, foi a política sustentada pela DS, de contribuir para o desenvolvimento do PT como partido reformista durante anos, o que levou, como conseqüência, à lógica de participação nos governos municipais primeiro e logo depois, no ingresso direto no governo capitalista “neoliberal” de Lula.

O giro estratégico ao abandono da ditadura do proletariado, as discussões teóricas abertas sobre a continuidade das instituições da democracia burguesa em uma sociedade de transição, as políticas oportunistas de organizações pertencentes ao Secretariado Unificado como a DS em primeiro lugar e logo também o PSOL no Brasil, indicam que, ainda que no próximo período a LCR não se funda em uma organização comum com partidos reformistas, ao deixar para trás a referência ao trotskismo, está preparando o terreno para liquidar todo o vestígio de organização revolucionária. A batalha então pelo caráter revolucionário do “novo partido” não poderá se limitar a questões táticas ou formais, mas terá que encarar estas profundas discussões teóricas e estratégicas.

O RESPECT e a tática de frente única

Uma polêmica com o SWP britânico

A direção do SWP apelou para o papel progressivo da coalizão Stop the War, uma frente única que foi impulsionada pelas mobilizações massivas contra a guerra do Irak em 2003, para justificar a fundação do RESPECT, uma aliança eleitoral com figuras marginalizadas da política burguesa como George Galloway e os líderes religiosos ou laicos da comunidade muçulmana, em sua maioria comerciantes ou clérigos e inclusive alguns burgueses.

O objetivo expresso do SWP era “criar uma alternativa eleitoral a altura do Labour”, para o qual foram acordados “um conjunto mínimo de pontos que eram o máximo que nossos aliados – e muitas milhares de pessoas ativas pela oposição ã guerra – aceitariam, mas que eram totalmente compatíveis com nossos objetivos a longo prazo.” [41] Com essa mesma lógica de ocupar espaços eleitorais que não expressam radicalização política mas o descontentamento com os partidos social liberais, a direção do SWP interveio no debate político na LCR francesa a favor de se apresentar uma candidatura única antineoliberal nas eleições presidenciais de abril de 2007.

O SWP sustenta que esta política não faz mais que seguir “o método de frente única tal como foi desenvolvido por Lenin e Trotsky no início da década de 1920 e depois reelaborado por Trotsky frente ao ascenso do nazismo no início dos anos 1930” [42].

Inclusive em elaborações prévias, um de seus dirigentes, John Rees, pretendia justificar esta política populista comparando-a com os soviets de operários, camponeses e soldados, dizendo que “eram uma aliança entre os representantes da classe operária e do campesinato, uma classe tipicamente pequeno-burguesa” [43]. A analogia não resiste ao mais mínimo questionamento: os soviets eram organismos de autodeterminação de massas, que sob a direção dos bolcheviques tomaram o poder; nesse sentido foram a expressão máxima da frente única que organizava o conjunto dos oprimidos sob direção proletária. A aliança de classes que se fez possível na Revolução Russa não implicava de nenhuma maneira num programa comum dos bolcheviques com os partidos camponeses, mas incluir em seu programa o problema da terra para os camponeses e tentar ganhar os camponeses pobres sem terra e o proletariado rural para o programa da revolução [44].

Acreditamos ser necessário voltar ás posições clássicas sobre a frente única operária, para demonstrar que a política de alianças do SWP são totalmente distintas em relação ás táticas revolucionárias de Lenin e de Trotsky.

A Internacional Comunista discutiu e votou no início dos anos 1920 a tática da frente única operária nos países capitalistas avançados, [45] que tinha o objetivo de acelerar a experiência do movimento operário com a socialdemocracia.

Essa orientação estava principalmente dirigida aos partidos comunistas ocidentais cuja força alcançava “um terço da vanguarda organizada, um quarto ou ainda a metade ou mais” [46]; ou seja, que tinham uma influência considerável na vanguarda operária mas que ainda era insuficiente para disputar a direção com os reformistas.

A tarefa preparatória desses partidos era arrancar a maioria do proletariado da influência socialdemocrata mediante ações comuns na luta de classes. O fundamento dessa tática era conquistar a confiança da maioria do proletariado em um momento em que a revolução não estava na ordem do dia, mas a luta da classe operária, por seus interesses imediatos, seguia seu curso. Era preparatória na medida em que, como dizia Trotsky, essa luta pelos interesses imediatos “em nossa época de grandes crises imperialistas sempre é o começo de uma luta revolucionária”.

Nos anos de 1930 Trotsky voltou a colocar a tática de frente única operária entre o Partido Comunista e a Socialdemocracia para derrotar o nazismo na Alemanha. Nessas discussões destacava que os oportunistas não podem distinguir um bloco parlamentar e um acordo elementar para levar adiante uma greve ou se defender das bandas fascistas. Esta unidade de ação na luta contra o fascismo era comparável para Trotsky ã política dos bolcheviques para enfrentar o golpe de Kornilov.

Nem nos anos de 1920 e 1930 a tática de frente única tinha o conteúdo que pretende dar hoje o SWP, nem significava adotar um programa mínimo “aceitável aos aliados (quer dizer, a alguma figura política burguesa) e aos votantes”, para conseguir bancadas parlamentares, como claramente diz o SWP. De nenhuma maneira implicava numa adaptação ã “conciência média” da classe operária, nem ás perspectivas de angariar bancadas parlamentares ou a “unidade” do campo opositor ao governo da situação, objetivos que animam atualmente alianças eleitorais como o RESPECT ou a frente PSOL-PSTU no Brasil.

Trotsky dizia, com razão, que para um marxista um problema não se resolve com discussões, mas sim adotando-se o método correto; porém “se se guia por métodos corretos, não é difícil encontrar as discussões apropriadas”.

Portanto, vamos citar mais uma vez Trotsky para polemizar com a “frente única de tipo especial” do SWP: “os acordos eleitorais, os compromissos parlamentares entre o partido revolucionário e a socialdemocracia servem, como regra geral, ã socialdemocracia. Os acordos práticos para a ação de massas, para os propósitos da luta, sempre são úteis ao partido revolucionário” [47]. Essa “regra geral” é aplicável quase sem variações ao RESPECT. O SWP cometeu quase milimetricamente os erros políticos que beneficiam os arrivistas e oportunistas e debilitam a política revolucionária. Não só fez um acordo eleitoral com personagens que não dirigem nem mobilizam um único operário, mas além disso teve uma política sistemática de concessões programáticas elementares, inclusive democráticas, como por exemplo o direito ao aborto, ou que os parlamentares do RESPECT ganhem o equivalente o salário médio da classe operária; ambas rechaçadas por Galloway [48].

O caráter populista da coalizão e a tentativa do SWP de manter sua hegemonia sobre setores que não tem nada a ver com o socialismo e menos ainda com o movimento operário, levou finalmente ao estalar de uma crise terminal da coalizão em agosto de 2007 e a sua posterior ruptura [49].

Em seu balanço logo após ter estourado a crise da coalizão, a direção do SWP se lamenta de que a poucos passos de colocar-se em marcha e com os primeiros êxitos eleitorais, o RESPECT se transformou em um trampolim para arrivistas que buscavam alguma plataforma que lhes permitisse ganhar um cargo parlamentar. O próprio Galloway fez a manobra de se mudar de distrito e os líderes muçulmanos buscaram o favor de suas comunidades prometendo políticas clientelistas [50].

O RESPECT só beneficiou a arrivistas pequeno-burgueses e não ajudou nem um pouco a classe operária britânica a avançar em sua independência política em relação ao trabalhismo.

Longe de admitir o erro da política, o SWP pretende explicar a crise do RESPECT como parte da crise da “esquerda radical européia” por questões objetivas como por exemplo o retrocesso do movimento altermundista, não só negando-se a fazer um balanço sério mas também insistindo com a mesma política para a Grã Bretanha.

A crise de outros projetos “antineoliberais”

Além do RESPECT, houve outras iniciativas do ponto de vista eleitoral de partidos amplos. Alguns poucos exemplos são suficientes para demonstrar que os programas “antineoliberais” dessas novas formações políticas são alheios aos interesses da classe operária.

No caso do Brasil, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) se apresentou nas últimas eleições na Frente de Esquerda junto com o PSTU (principal partido da LIT-CI) com um programa que consistia em um conjunto de medidas capitalistas “desenvolvimentistas” ou favoráveis aos setores “produtivos” da burguesia não ligados ás finanças, como por exemplo a queda da taxa de juros. Inclusive sua principal figura, Heloísa Helena (do Secretariado Unificado) não só se pronunciou contra o direito ao aborto, como também logo se somou a uma ativa campanha antiabortista.

Uma vez no parlamento, seus deputados levaram até o final essa orientação, votando a favor da lei trabalhista conhecida como “Super-Simples”, que beneficia com medidas fiscais e de flexibilização trabalhista os pequenos empresários. Essa escandalosa votação lhe custou a ruptura de conhecidos intelectuais.

Em Portugal, o Bloco de Esquerda, um partido comum formado em1999 por ex-maoístas, o ex-PRS (seção do Secretariado Unificado) e a corrente Ruptura/FER (grupo da LIT-CI), firmou em agosto do ano passado um acordo de “governabilidade” na câmara municipal de Lisboa com o Partido Socialista, o mesmo que desde o governo vem lançando um plano de medidas antioperárias. Esse partido, que conta com um bloco de oito parlamentares, continuou participando do chamado Partido da Esquerda Européia, um espaço dirigido pelo Rifondazione Comunista inclusive depois da integração deste último ao governo de Prodi em abril de 2006 e de seu apoio ao envio de tropas ao Afeganistão.

A crise do Scottish Socialist Party (SSP) merece um parágrafo a parte. Este partido, que durante anos havia estado junto com o Rifondazione Comunista, um dos modelos de “partido amplo”, e haviam conseguido uma importante e grande quantidade de votos e parlamentares, acabou explodindo por conta de um escândalo pessoal provocado por um de seus principais dirigentes, Tomy Sheridan, depois que um periódico burguês publicara um artigo que falava sobre sua vida privada. Como se pode notar, a divisão do SSP que foi reduzido a dois pequenos grupos, não o foi por grandes questões políticas ou de princípios, mostrando uma importante degradação que evidentemente não tem nada a ver com a política revolucionária.

A lista de exemplos poderia seguir. Ainda que as situações variem de um país para outro, a conclusão inevitável de todo esse processo, é que a política das organizações que reivindicam-se trotskistas, quando participam de fenômenos que surgem objetivamente, como por exemplo o Rifondazione Comunista, foi sempre o de subordinar-se ás direções reformistas sem dar nenhuma batalha conseqüente por uma estratégia e um programa operário revolucionário que permita construir alas esquerdas dentro desses fenômenos.

Quando foram os principais impulsionadores de “partidos amplos”, como no caso de RESPECT, rebaixaram o programa a altura de seus aliados circunstanciais, inclusive tomando reivindicações de outras classes – essencialmente da burguesia “não monopolista”, ou da pequeno-burguesia.

Não se trata de que nós, revolucionários, não participemos ou não tenhamos táticas para nos ligarmos aos novos fenômenos políticos que se dêem no movimento operário, ainda que eles sejam reformistas. Pelo contrário, é nossa obrigação travar uma batalha nessas organizações para ganhar os melhores elementos para uma estratégia da revolução operária.

Essa era a dialética que explicavaTrotsky nas discussões com o SWP norteamericano sobre a tática de partido operário em 1938, entre o “partido amplo” e o partido revolucionário: “A necessidade de um partido político para os operários se origina das condições objetivas, mas nosso partido é demasiado pequeno e tem pouca autoridade para organizar os operários nas suas próprias fileiras. Por isso devemos dizer aos operários e ás massas: deveister um partido”, e continua dizendo que a consigna de partido operário independente “prepara e ajuda os operários a avançarem e a prepararem o caminho para o nosso partido” [51].

Lamentavelmente, os “partidos amplos” e as “frentes antineoliberais” não fizeram mais que desperdiçar sua força militante a serviço de levar arrivistas aos parlamentos, que no dia seguinte quando conseguirem sua bancada, ou desertam para partidos burgueses ou votam leis antioperárias – como no caso do PSOL ou de Galloway no RESPECT.

Sobre partidos e estratégias

Em um velho artigo de 1969, no marco de uma polêmica com Jean Paul Sartre, a intelectual comunista italiana Rossana Rossanda recorria a uma simples verdade histórica, afirmava que a “teoria da organização encontra-se estreitamente vinculada com uma hipótese acerca da revolução e não pode ser separada dela” [52].

Esta relação entre a construção de uma organização, suas táticas e seus objetivos estratégicos – com sua “hipótese estratégica para a revolução” – marcou a história do Partido Bolchevique, cujas tarefas e sua política em “tempos de paz” ou inclusive sob a reação, estavam em função da revolução operária a qual se preparava para dirigir [53]

Como explicava Lenin, o bolchevismo só pôde ter um papel dirigente em outubro de 1917 e durante a guerra civil por duas razões fundamentais: 1) por seus sólidos fundamentos teóricos; 2) por sua história prática que, dadas as condições russas, em somente quinze anos, entre 1903 e 1917, havia passado por uma amplíssima gama de experiências que incluia o trabalho “legal e ilegal, pacífico e tormentoso, clandestino e aberto, de propaganda nos círculos e de propaganda entre as massas, parlamentar e terrorista”. Esta particularidade fez com que num breve período não só concentrasse uma grande variedade de métodos de luta de classes, mas também que a classe operária, “como conseqüência do atraso do país e do peso do domínio do czarismo, amadurecesse com particular rapidez e assimilasse com particular avidez e eficácia a ‘última palavra’ correspondente da experiência política americana e européia” [54].

Nesse mesmo sentido, ainda que em condições históricas muito distintas das que levaram ao desenvolvimento do bolchevismo na Rússia, as “manobras táticas” que Trotsky recomendava aos grupos que constituiam a Oposição de Esquerda primeiro, e logo a IV Internacional, como o entrismo, ou a tática de partido de trabalhadores, mantinham uma relação dialética com os objetivos de construção de partidos operários marxistas em momentos nos quais os tempos haviam se acelerado, a luta de classes havia cada vez mais se agudizado, mas a relação entre o proletariado e o marxismo revolucionário tinha como obstáculo a existência de partidos socialdemocratas reformistas ou comunistas stalinizados.

Evidentemente, hoje continua sendo uma necessidade para os revolucionários ter políticas transicionais e táticas no terreno da construção partidária que permitam traçar uma ponte até os setores mais avançados da vanguarda proletária. Do contrário, se aumenta o risco de degeneração sectária em um período histórico no qual a revolução operária esteve fora de cena durante as últimas três décadas e que o colapso dos regimes stalinistas e a restauração capitalista facilitaram a propaganda burguesa de que não há alternativa para o capitalismo.

Uma grande parte das correntes da chamada “extrema esquerda” vem manifestando um ceticismo histórico de que se possa reconstruir o marxismo revolucionário no seio da classe operária e, em última instância, de que as massas se levantem violentamente contra o poder burguês e voltem a colocar na ordem do dia a revolução social.

Os projetos de “partidos amplos” e “frentes antineoliberais” são o oposto de uma tática política que, como dizia Trotsky com relação ã consigna de partido de trabalhadores, ao ajudar os operários a avançarem em sua independência com relação ã burguesia e na necessidade de intervir na luta política, abria o caminho para o fortalecimento de um partido marxista revolucionário na classe operária.

Nenhuma frente ou partido – “antineoliberal” ou “anticapitalista” – sem delimitação clara de classe, sem um programa que transitoriamente tenha a revolução como objetivo, sem uma política para intervir audazmente na luta de classes atual, tomando os conflitos verdadeiramente como uma “escola de guerra” para lutar pela expulsão das burocracias sindicais, o exercício da democracia operária e, em última instância, impulsionar as tendências progressivas que apontam para a superação do corporativismo e a transformação da classe operária em classe hegemônica, permitirá que a classe operária avance em um sentido revolucionário mas, pelo contrário, “trabalhará” para a estratégia de classes ou setores de classe inimigos da revolução.

Um dos argumentos com os quais pretende-se justificar esses projetos, além da marginalidade ou da escassa incidência das correntes da esquerda trotskista e a necessidade de superar o “sectarismo”, é a “renovação” do marxismo em função das transformações das últimas décadas. No entanto, essa aparente “renovação” parece ser mais a adoção dos novos “dogmas” antimarxistas de nossa época, que recordam no seu início a revisão teórica iniciada por Bernstein. A adaptação ao que está dado é tão velha como a política e, uma vez mais, nesse terreno a novidade resulta em ser a repetição degradada de antigos erros.

Em um texto de 1909 dirigido essencialmente contra os mencheviques, Trotsky mencionava algumas das características do oportunismo, que vale a pena recordar por sua impressionante atualidade. Dizia que: “Nos períodos em que as forças sociais aliadas e adversárias, tanto por seu antagonismo como por suas reações mútuas, levam a uma vida política sem movimento; quando o trabalho molecular do desenvolvimento econômico, reforçando mais ainda as contradições, ao invés de romper o equilíbrio político, parece mais endurecer-lhe provisoriamente e assegurar-lhe uma espécie de perenidade, o oportunismo, devorado pela impaciência, busca em torno de si ‘novas vias’, ‘novos’ meios de realização. Se esgota em lamentações sobre a insuficiência e a incerteza de suas próprias forças e busca ‘aliados’ (…) Quando os aliados da oposição não podem lhe servir, corre ao governo, suplica, ameaça… Por último, encontra um lugar no governo (ministerialismo), mas somente para demonstrar que, se a teoria não pode adiantar o processo histórico, o método administrativo tão pouco consegue melhores resultados” [55].

Historicamente a ruptura entre os interesses imediatos e os objetivos históricos, entre a tática e a estratégia, entre o “programa mínimo” e o “programa máximo”, deu lugar ao oportunismo político e ao revisionismo teórico nas correntes do movimento operário.

Salvo as diferenças, tanto na LCR, como no PSOL ou na DS do Brasil, ou no SWP é possível reconhecer alguns dos resquícios desse velho oportunismo.

O que significa não acreditar que o “socialismo do século XXI” será um “socialismo empresário” com Chávez e a burguesia venezuelana, quer dizer, uma absoluta contradição nos termos? Como explicar o “municipalismo” ou o “ministerialismo” da LCR e do Secretariado Unificado se não é por ter renunciado a uma estratégia revolucionária e ter se adaptado ã “normalidade” da democracia burguesa? Como interpretar, se não como oportunismo, os acordos de governabilidade do Bloco de Esquerda com a social-democracia em Portugal? Em síntese, que nome dar ã estratégia de construir durante toda uma etapa histórica, movimentos ou partidos comuns entre revolucionários e reformistas?

A história do século XX demonstrou pela positiva no caso da Revolução Russa de 1917, mas essencialmente pela negativa, que não é possível construir um partido operário marxista no curso mesmo dos acontecimentos revolucionários, mas sim que para cumprir um papel decisivo, este deve ter desenvolvido, no período anterior, uma inserção qualitativa na classe operária e uma experiência prática na luta de classes que tenha posto a prova sua teoria, sua estratégia e sua capacidade para influir nos setores avançados do proletariado.

Aqueles que seguimos reivindicando a necessidade de uma revolução social que ponha fim ao capitalismo , a ditadura do proletariado, o desenvolvimento de organismos de auto-determinação de massas como expressão mais elevada do agudizamento da luta pelo poder político, a “insurreição como arte”, o pluripartidarismo soviético e o caráter internacional da revolução, devemos intervir nos debates estratégicos em curso para recriar o ponto de vista do marxismo revolucionário. Como diz o Programa de Transição, “A IV Internacional não busca nem inventa nenhuma panacéia. Mantem-se inteiramente no terreno do marxismo, única doutrina revolucionária que permite compreender a realidade, descobrir as causas das derrotas e preparar conscientemente a vitória” [56]. Como mostramos, nada disso é o que apontam os projetos oportunistas de “partidos amplos” sem delimitação estratégica nem de classe. Mas a oposição a estas políticas não deve levar tão pouco ã autoproclamação estéril de pequenos grupos. Para avançar em direção ã construção de verdadeiros partidos marxistas revolucionários, é preciso sustentar distintas políticas transitórias que permitam dar passos na independência política da classe operária. Por exemplo, na Venezuela, onde vem se fazendo uma experiência com o nacionalismo burguês de Chávez, nossos companheiros da JIR (Juventud de Izquierda Revolucionaria) estão propondo aos setores classistas que militam na C-CURA (Corriente Clasista, Unitaria, Revolucionaria y Autónoma) da UNT (Unión Nacional deTrabajadores) [57],e que se opuseram a ingressar no PSUV chavista, impulsionar em comum a luta por um partido de trabalhadores. Na Argentina, o PTS está chamando as correntes trotskistas que não adotaram a política de dissolverse ou de aliar-se com setores da centroesquerda (como o Partido Obrero e aquelas que, como a Esquerda Socialista e o MAS, nas últimas eleições nacionais formaram junto com o PTS o FITS) a abrir a discussão para avançar na construção de um partido comum marxista revolucionário, com centralismo democrático – que supõe a liberdade de tendências – e numa intervenção comum na luta de classes, que permita mediante a experiência e a discussão, superar a dispersão atual das forças que nos reivindicamos do marxismo revolucionário. Por sua vez, o PTS vem também colocando aos setores sindicais combativos e ás forças da esquerda operária e socialista a necessidade de agitar entre a classe operária a idéia de por em pé um grande partido de trabalhadores, como forma de ajudar a acelerar a experiência que vem se fazendo com o kirchnerismo. Esses são somente alguns exemplos das formas táticas que pode adotar hoje a luta pela construção de partidos revolucionários sem os quais a classe operária não poderá tomar o poder e retomar, em nosso século XXI, o caminho empreendido há 90 anos por aqueles que na Rússia tomaram o céu por assalto.


Notas

[1] Nossa corrente polemizou em diversas oportunidades com as principais idéias destas correntes do pensamento pós-marxista, como por exemplo a teoria política de E. Laclau e a influência que têm sobre algumas organizações marxistas, como a concepção liberal da política de H. Arendt. Ver C. Cinatti, “A impostura pós-marxista”, Estrategia Internacional N° 20, setembro de 2003; C. Cinatti e E. Albamonte, “Trotsky e a democracia soviética. Para além da democracia liberal e do totalitarismo”, Estrategia Internacional N° 21, setembro de 2004.

[2] Esta formulação, que aparece no Manifesto Comunista, dizia que a luta econômica era totalmente insuficiente para a realização dos objetivos históricos da classe operária – a construção de uma sociedade comunista de produtores livres associados, na qual desapareceriam as classes sociais e o Estado. Para esse fim, o proletariado deveria constituir-se na classe emancipadora do conjunto dos oprimidos, superar o enfrentamento com os patrões individuais em cada fábrica e elevar-se à luta política contra as relações sociais capitalistas, inclusive o Estado burguês. Na Resolução sobre o estabelecimento de partidos operários, adotada pelo Congresso de Haya da I Internacional, realizado em setembro de 1872 em oposição aos anarquistas, colocava-se claramente a necessidade de fundar partidos operários: “Contra o poder coletivo das classes proprietárias, a classe operária não pode atuar como classe sem organizar-se em partido político, distinto e oposto a todos os velhos partidos formados pelas classes possuidoras. Esta organização da classe operária em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e seu fim último: a abolição das classes. A combinação de forças que a classe operária já utilizou por suas lutas econômicas deve servir como uma alavanca para suas lutas contra o poder político dos latifundiários e dos capitalistas (…) Conquistar o poder político se transformou na grande obrigação da classe operária”.

[3] Esta expressão se encontra, por exemplo, em uma carta de K.Marx a Ferdinand Freiligrath de fevereiro de 1860, na qual Marx lhe responde sobre um problema legal que havia suscitado a participação de Freiligrath na Liga dos Comunistas: “Tenho que ressaltar que depois que a ‘Liga’ foi abandonada em novembro de 1852, não voltei a participar de nenhuma outra sociedade, secreta ou pública, e portanto, o partido em seu sentido completamente efêmero, deixou de existir para mim faz 8 anos”. E mais adiante continua: “A ‘Liga’, como a sociedade de saisons em Paris e outras cem sociedades mais, foram simplesmente um episódio na história de um partido que está brotando em todas as partes do solo natural da sociedade moderna”. Esta definição de Marx é citada por D. Bensaïd no seu trabalho Stratégie et politique: de Marx à la IIIe Internationale, disponível em: www.europe-solidaire.org.

[4] Para uma análise mais profunda sobre este tema ver A.Diaz, “Novos argumentos para velhos reformismos. A leitura autonomista do legado de Lenin”, Lucha de Clases N° 6, junho de 2006.

[5] Como dizia Trotsky no Programa de Transição, isso não só tem conseqüências políticas e estratégicas, mas também leva a revisar a teoria revolucionária: “As trágicas derrotas que o proletariado mundial vem sofrendo há uma série de anos tem levado as organizações oficiais a um conservadorismo, todavia mais acentuado e, ao mesmo tempo, os ‘revolucionários’ pequeno-burgueses decepcionados a buscar ‘novos’ caminhos. Como sempre nas épocas de reação e decadência, por todas as partes aparecem magos e charlatões que querem revisar todo o desenvolvimento do pensamento revolucionário. No lugar de aprender com o passado, o ‘corrigem’. Uns descobrem a inconsistência do marxismo, outros proclamam a quebra do bolchevismo. Uns atribuem ã doutrina revolucionária a responsabilidade dos crimes e erros daqueles que o traíram. Outros maldizem a medicina porque não assegura uma cura imediata e milagrosa. Os mais audazes prometem descubrir uma panacéia, enquanto recomendam que se detenha a luta de classes”.

[6] Para uma crítica a D. Bensaïd sobre a questão da hegemonia proletária e o partido leninista ver G. Gutiérrez, “Sobre a atualidade da aposta leninista”, em Lucha de Clases N° 6, junho de 2006.

[7] Por exemplo, em um artigo, A. Artous afirma que “o atual período está caracterizado pelo fim do ciclo histórico que começou com outubro de 1917 (…) O período que começou com outubro de 1917 corresponde em termos gerais com a história de Hobsbawm do curto século XX”. A conseqüência óbvia disso é a reformulação do projeto estratégico que deu lugar nos últimos anos a um debate dentro da Liga Comunista Revolucionária francesa.

[8] L. Trotsky, “Stalinismo e bolchevismo. Sobre as raízes teóricas da IV Internacional”, 29 de agosto de 1937, Escritos León Trotsky 1929-1940, Buenos Aires, CEIP, edição digitalizada.

[9] Lutte Ouvrière, que fazia uma defesa dogmática e sectária da “pureza” do programa, defende uma política inclusive mais oportunista de fazer candidaturas com o Partido Socialista e o Partido Comunista para as eleições municipais de 2008. Em um artigo se menciona que a LO “Examina...alianças locais com a esquerda e sobretudo com o Partido Socialista. Como revelou Le Parisien, conversas estão em curso em diversas cidades, como Lorient ou Angers. Exemplo edificante também, em Saint-Brieuc, nas Cotes d’ Armor. A Lutte Ouvrière enviou uma nota no dia 9 de novembro para fazer uma oferta de serviço ao cabeça da candidatura do PS, Dabielle Bousquet: ‘No contexto de ofensiva brutal da direita e da grande patronal, nós estaríamos abertos ã idéia de participar em uma lista comum com outras forças de esquerda...Nossa participação em vossa candidatura poderia contribuir ã reconquista do município” (Le Figaro, 16/11/2007). Outros artigos similares comentaram a questão nos principais jornais franceses.

[10] Die Linke foi fundado em junho de 2007, produto da fusão, a partir de um processo de discussão de quase dois anos, do ex PDS (o partido stalinista da ex Alemanha Oriental) e o WASG (Alternativa Eleitoral pelo Emprego e pela Justiça Social), uma ala essencialmente de sindicalistas que rompeu com o partido socialdemocrata alemão (SPD). Este partido parece ter características mais similares ao reformismo operário tradicional e talvez capitalize o descontentamento com o SPD. O ex PDS tem vários cargos em municípios e governos locais. Um dos pontos de tensão na formação recente é a participação em uma coalizão com o SPD no governo de Berlim desde onde vem implementando medidas antioperárias e antipopulares. Do novo partido participam algumas das correntes da esquerda marxista, como o grupo da International Socialist Tendency, mas com uma política de adaptação completa ã direção existente.

[11] O Proyecto Sur tem como principais referências o cineasta de tendência peronista Pino Solanas e o economista e deputado ligado ã Central de Trabajadores Argentinos, Claudio Lozano. Nenhum dos dois sequer se reivindica de esquerda. Pino Solanas já fundou um movimento similar, a Frente del Sur, que logo deu origem ao Frepaso. O MST pretende apresentar essa adaptação grosseira ã centro-esquerda como um tipo de “renovação” e inclusive sem hesitar em citar a experiência bolchevique alegando que foram os mencheviques os que seguiram a “letra” de Marx (sic). Em um artigo publicado na Revista de América N° 2, de agosto de 2007, um dirigente defendia este crasso oportunismo dizendo que “a realidade é a realidade. Ser dogmático é antimarxista, ser sectário é antimarxista”. Na verdade, ser do MST é antimarxista.

[12] O MST e o grupo irmão na Venezuela, Marea Clasista y Socialista – que diretamente entrou no PSUV, o partido único chavista -, chamaram o apoio ã reforma constitucional – que entre outras medidas implicava num aprofundamento das tendências bonapartistas do regime chavista - no referendo realizado em 2 de dezembro de 2007, no qual Chávez foi derrotado, não tanto por um crescimento dos votos da direita mas pela abstenção de sua própria base social. O PSOL brasileiro também chamou o voto pelo SIM de Chávez. A contracara desta política foi o PSTU que se alinhou com o NÃO que a direita esquálida levantava, e que de nenhuma maneira poderia expressar uma política independente dos trabalhadores. Sobre este tema ver a declaração da Juventud de Izquierda Revolucionaria da Venezuela.

[13] Os grupos trotskistas italianos se mantiveram dentro da Rifondazione Comunista, inclusive após o seu ingresso no governo de Prodi com o argumento de não ficar por fora do processo “antiberlusconi”, e serem assim acusados de sectarismo ou responsabilizados por uma eventual derrota do mal menor frente ã direita. No caso do SU, que fora um dos seus principais dirigentes, Livio Maitán atuou diretamente como conselheiro de Bertinotti, até seu falecimento em 2004.

[14] D. Bensaïd, “Sur le retour de la question politico-strategique”, em Citique Communiste N° 181 (versão em espanhol: “Sobre el retorno de la cuestión político-estratégica”, disponível em www.vientosur.info).

[15] As greves operárias de maio de 1968 foram desmontadas por um aumento salarial, o governo contou com a cumplicidade do PCF que havia se oposto ao movimento estudantil. Na Itália, dez anos depois do Outono Quente, e com um importante desenvolvimento de lutas urbanas mas de caráter popular, os operários contratados da fábrica Fiat protagonizaram uma “greve por tempo indeterminado” com piquetes, que teve um efeito similar a uma ocupação de fábrica. Eram em torno de dez mil trabalhadores em condições precárias que não contavam com apoio nem do sindicato nem do PCI (que participava do governo). A patronal acusou seus dirigentes de perpetrar atos terroristas e os despediu. Em 1980 a Fiat avançou num plano de reestruturação que previa a demissão de trinta mil operários e, ainda que houvesse uma greve que durou mais de um mês encabeçada pelo próprio PCI, a patronal impôs seu plano e a luta foi derrotada.

[16] Essa foi a conclusão de Guevara: “As burguesias autóctonas perderam toda a sua capacidade de oposição ao imperialismo –se alguma vez a tiveram– e só forma sua furgón de cola seguidora (??). Não há mais mudanças para se fazer, ou revolução socialista ou caricatura de revolução” (Mensagem aos povos por meio da Tricontinental). Seus supostos seguidores esconderam completamente estas conclusões, integrando-se a governos capitalistas como o de Kirchner na Argentina, constituindo uma verdadeira “caricatura de guevarismo”.

[17] Não vamos nos referir a outras como por exemplo, os movimentos islamitas, que estariam compreendidos nas estratégias populistas ou de colaboração de classes, ainda que com a particularidade do elemento religioso. Ver por exemplo, C. Cinatti, “Islà político, antiimperialismo e marxismo”, Herramienta N° 35, 2007.

[18] Para ler uma crítica de nossa corrente ao autonomismo, ver por exemplo, C. Castillo, “Una crítica marxista a Toni Negri y los autonomistas”, Estrategia Internacional N° 14, novembro/dezembro de 1999; C. Castillo, “¿Comunismo sin transición?”, Estrategia Internacional N° 17, outono de 2001; J. Chingo, G. Dunga, “¿Imperio o imperialismo? Una polémica con “El largo siglo XX” de Giovanni Arrighi e “Imperio” de Toni Negri y Michael Hardt”, Estrategia Internacional N° 17, outono de 2001; C. Castillo, E. Albamonte, “Discutiendo desde Trotsky con las ideas dominantes de nuestra época”, Estrategia Internacional N° 21, setembro de 2004

[19] O IX Congresso da IV Internacional (o terceiro depois da reunificação de 1963), realizado em 1969 adotou por uma maioria, inspirada por E.Mandel e LivioMaitán, a Resolução sobre a América Latina na qual se reconhece o caráter rural do ascenso latinoamericano (inclusive depois do Cordobazo!), a centralidade da guerra de guerrilhas como estratégia e o caráter prolongado da luta armada. O documento da minoria que rebatia parte desta linha estratégica foi redatado por Hugo Blanco, Peter Camejo, Joseph Hansen, Ernesto González e Nahuel Moreno. No entanto, isso não implicava que a oposição sustinha uma estratégia conseqüentemente revolucionária.Os grupos trotskistas já haviamdesenvolvido adaptações a “novos sujeitos sociais”, essencialmente ao campesinato, e com elas, uma teoria sobre as direções “inconscientemente revolucionárias” como o maoísmo, o castrismo ou o guevarismo. Por exemplo, Nahuel Moreno escreveu que o maoísmo, e em particular sua estratégia de “guerra popular prolongada” sob a forma de guerrilha, era “um enriquecimento de enorme importância ao Programa de Transição do trotskismo”. Isso estava de acordo com as conclusões do V Congreso da IV Internacional, realizado em 1957, no qual se ressaltou a importância da guerrilha “como uma forma de luta econômica que precisa de um enquadramento limitado, um pequeno número de combatentes, poucos meios materiais e implica numa paralisia e numa desmoralização considerável para as forças inimigas”. N. Moreno, Las revoluciones china e indochina, Buenos Aires, Editora Pluma, 1973.

[20] Para ler uma crítica de nossa corrente ã concepção da Revolução Permanente de NahuelMoreno, ver M. Romano, “Polêmica com a LIT e o legado teórico de Nahuel Moreno”, Estrategia Internacional N° 3, dezembro de 1993 - janeiro de 1994.

[21] Era tradicional nas mobilizações de massas em solidariedade com a luta do Vietnã cantar a consigna “Ho, Ho, Ho, Ho Chi Minh” em apoio ao líder vietnamita. A JCR (antecessora da LCR) também cantava esta consigna, ao que os militantes da Organisation Communiste Internationaliste lhes respondiam “Ta, Ta, Ta, Ta Thu Thau”, em referência ao dirigente do trotskismo vietnamita assassinado pelo Vietminh em 1945 por ordem pessoal de Ho Chi Minh. Em 1973 o dirigente do SU Pierre Rousset publicou o livro Le partie communiste vietnamien no qual colocava a teoria de que sob a pressão dos acontecimentos o stalinismo vietnamita havia se tornado revolucionário tomando de fato a teoria da Revolução Permanente. Para uma análise detalhada sobre o trotskismo no Vietnã e suas repercussões no movimento trotskista internacional, ver, por exemplo, “VietnamWorkers’ Revolution and National Independence”, Revolutionary History, Vol. 3 N° 2, Autum, 1990

[22] Para uma crítica ã estratégia do PRT-ERP ver, C. Castillo, “Elementos para un “cuarto relato” sobre el proceso revolucionario de los ’70 y la dictadura militar”, Lucha de Clases N° 4, novembro de 2004. Para um balanço mais acabado das estratégias da esquerda argentina no período que vai desde o cordobazo até o golpe militar de 1976, ver R. Werner, F. Aguirre, Insurgencia obrera en la Argentina 1969-1975. Clasismo, Coordinadoras interfabriles y estrategias de la izquierda, Buenos Aires, Edições IPS, 2007.

[23] No interior da LCR nos últimos anos vinham atuando cinco tendências organizadas de forma permanente, das quais uma era dirigida por Christian Picquet e Francis Sitel, que é a que coloca mais abertamente a linha de dissolver-se em um novo partido anticapitalista com um programa mínimo.

[24] C. Cinatti, E. Albamonte, “Para além da democracia liberal e do totalitarismo”, Estratégia Internacional Brasil N° 01, novembro/dezembro 2004

[25] A. Artous, “Orphelins d’une stratégie révolutionnaire ?”, Critique Communiste N° 179, março de 2006.

[26] Já discutimos contra esta posição em C. Cinatti, “La actualidad del análisis deTrotsky frente a las nuevas (y viejas) controversias sobre la transición al socialismo”, Estrategia Internacional N° 22, novembro de 2005.

[27] Em seu artigo “Sobre el retorno de la cuestión político-estratégica”, Bensaïd diz que esta concepção sobre a “dupla representação” se remonta a posições ás quais havia chegado E.Mandel sobre a “democracia mista”, produto de uma revisão da relação entre os soviets e a assembléia constituinte russa. Esta posição sobre as formas democráticas baseadas no sufrágio universal voltou a ser colocada na Nicarágua, a propósito da derrota do sandinismo, onde segundo Bensaïd “podíamos impugnar o fato de organizar eleições ‘livres’ em 1989, em um contexto de guerra civil e estado de sítio, mas não poríamos em discussão o princípio. Reprovávamos os sandinistas pela supressão do ‘conselho de Estado’ que poderia ter constituído um tipo de segunda câmara social e um pólo de legitimidade alternativa diante do parlamento eleito. Do mesmo modo, numa escala mais modesta, seria útil voltar de novo sobre a dialética em Porto Alegre entre a instituição municipal eleita por sufrágio universal e os comitês do orçamento participativo”. Em outros textos, o autor compara a gestão municipal de Porto Alegre e os comitês do pressuposto participativo como uma forma de “poder dual institucional”. Ver por exemplo “Le Sourire du Spectre. Nouvel esprit du communisme”, Editions Michalon, França, 2000, pag. 197.

[28] Numa carta a Pietro Tresso e a outros revolucionários, Trotsky lhes recorda que o argumento de Hilferding era muito similar ao de Zinoviev e Kamenev nas vésperas da revolução de outubro de 1917, que “ao se oporem ã insurreição, se pronunciaram a favor de esperar que se reunisse a Assembléia Constituinte para criar um ‘Estado combinado’ mediante a fusão da Assembléia Constituinte e os soviets de operários e camponeses”. E conclue que os bolcheviques tinham política para a Assembléia Constituinte mas que havia uma diferença fundamental: “num caso (com Lenin) se tratava da formação de um Estado proletário, de sua estrutura e de sua técnica. No outro, (Zinoviev, Kamenev, Hilferding) se tratava da combinação constitucional de dois Estados correspondentes a classes inimigas em vistas de desviar uma insurreição proletária que houvesse tomado o poder”. Ver L. Trotsky, “Problemas de la revolución italiana”, 14 de maio de 1930, Escritos León Trotsky 1929-1940, Buenos Aires, CEIP “León Trotsky”, edição digitalizada.

[29] K. Kautsky, “La nueva táctica”, Debate sobre a greve de massas, segunda parte,México, Pasado y Presente, 1976, pág. 120-121.

[30] W. Benjamin, “Tesis de filosofía de la historia”, Discursos Interrumpidos I, Buenos Aires, Taurus, 1989, pág.184.

[31] D. Bensaïd, Op. cit.

[32] L.Trotsky, “Report on the Fourth Congress of the CI”, First Five Years of the Communist International, Vol. 2, New York, Pathfinder, pág. 324-326.

[33] Bensaïd, no artigo sobre o retorno da questão político estratégica, diz que dirigentes do SU e da LCR expressaram oralmente ã DS suas “reservas quanto a esta participação” [se refere ã participação de Miguel Rosseto como ministro do governo Lula] e que também alertaram dos perigos que isso implicava. No entanto, decidiram não fazer disso “uma questão de princípios, preferindo acompanhar a experiência para fazer o balanço com os companheiros para além de administrar lições ‘de longe’”.

[34] K. Marx., “Carta a Joseph Weydemeyer”, Londres, 5 de março de 1852, em Obras Escogidas, versão digitalizada disponível no site do MIA.

[35] V. I. Lenin, “Tese e informe sobre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado”, apresentado no I Congresso da III Internacional, 4 de março de 1919.

[36] V. I. Lenin, O esquerdismo, doença infantil do comunismo, Buenos Aires, Anteo, 1985.

[37] L. Trotsky, “A 90 años del Manifiesto Comunista”, em Naturaleza y dinámica del capitalismo y la economía de transición, CEIP, Buenos Aires, 1999, pág. 161.

[38] Esta posição foi sustentada pela tendência interna dirigida por Christian Picquet e a tendência encabeçada pelo Socialism par en bas, da IST nas vésperas das eleições presidenciais de abril de 2007. Até o último momento colocaram a política de uma candidatura única “antineoliberal” com José Bové, o PCF e outros movimentos sociais com base no bloco do voto “NÃO” no referendo constitucional da UE. Os resultados eleitorais favoreceram a LCR, cujo candidato Olivier Besancenot obteve 4,1% dos votos contra 1,9% do PCF e 1,3 % de Bové. Esses resultados debilitaram a posição destas tendências que, entretanto, continuam tendo a mesma política.

[39] A Fração da Lutte Ouvriére fez uma crítica similar ao projeto de novo partido dizendo que “oscila entre um partido revolucionário e um reagrupamento de anticapitalistas, ecologistas, feministas, altermundialistas, internacionalistas, trotskistas, guevaristas, correntes do PCF. “Oui au nouveau parti... révolutionnaire”, Rouge N° 2225. Alguns meios de comunicação como Le Monde já se referem a este novo partido como o “partido de Besancenot” para destacar que se construiria mais ao redor da figura de Besancenot e menos sobre a tradição revolucionária do trotskismo.

[40] F. Sitel, Stratégie révolutionnaire: résurgences et cours nouveaux... em Critique Communiste N° 179, pág 140.

[41] “The Socialist Workers Party and RESPECT”, declaração do Comitê Central, 3 de novembro de 2007.

[42] Idem.

[43] J. Rees, “Socialism in the 21st century”, International Socialism N° 100, pág.30

[44] A confusão é ainda maior no debate aberto pela crise do RESPECT; o grupo da IST da Nova Zelà¢ndia, alinhado com G.Galloway e com o grupo do SU, diz que considera o RESPECT “e outras formações da ‘esquerda ampla’ como Die Linke na Alemanha, o Bloco de Esquerda em Portugal, o PSUV na Venezuela e o RAM da Nova Zelà¢ndia como formações transicionais no sentido em que as entendia Trotsky (sic)”. E continuam dizendo que “no programa e na organização, devem ‘responder ã consciência média’ – promover uma unidade dialética entre princípio revolucionário e a consciência reformista das massas”, D. Lawless, Open letter from Socialist Worker, New Zealand, A letter to all members of the SWP (Britain) em: International Viewpoint Issue 393, Outubro de 2007, p. 26-28.

[45] Sobre a tática de “frente única antiimperialista” que discutiu esse mesmo congresso, como já dissemos em outros artigos, acreditamos que estava relacionada com uma teoria sobre a revolução anticolonial que previa o desenvolvimento e a derrota da Revolução Chinesa, por isso mantemos que essa foi superada pela sistematização daTeoria da Revolução Permanente deTrotsky. A prova disso é que Trotsky não volta a mencionar a tática de frente única antiimperialista. O resultado de uma tática assim substituiria a estratégia operária pela colaboração de classes com a burguesia nacional, fazendo de fato uma teoria populista para os países capitalistas da periferia. Algumas correntes que se reivindicam trotskistas, como o Partido Obrero da Argentina, ainda hoje apelam para esta tática para justificar, por exemplo, o apoio eleitoral a Evo Morales na Bolívia. Para uma polêmica sobre este tema ver J. Dal Masso, “Ilusión gradualista”, Lucha de Clases N° 7, junho de 2007.

[46] L.Trotsky, “The question of the United Front”, Fevereiro de 1922, reproduzido em New International, Vol. 4 N° 7, Julho de 1938, edição digitalizada, pág. 216-218.

[47] L. Trotsky, “For a Workers’ United Front Against Fascism”, 1931, reproduzido em Bulletin of the Opposition, N° 27, março de 1932, edição digitalizada.

[48] Agora o SWP se lamenta de que Galloway não cumpriu as expectativas de atuar no parlamento como “tribuno dos oprimidos” e que está entre os cinco parlamentares com maiores salários (300.000 libras ao ano). O dirigente do ISG, AlanThornet, numa demonstração de cinismo sem precedentes, defende Galloway, criticando o SWP de sempre “haver lutado para rebaixar o perfil socialista do RESPECT”, e que “todas as publicações saíam em nome do RESPECT sob seu controle sem sequer uma menção ao socialismo”. A. Thornet, “Socialist Workers Party splits Respects”, International Viewpoint, novembro de 2007.

[49] Galloway chamou o enfrentamento com os “trotskistas” e denunciou supostas manobras burocráticas por parte do SWP. Com ele foram retirados da coalizão as figuras “amplas” como o cineasta Ken Loach, as organizações muçulmanas, e também, de maneira inacreditável, organizações de esquerda como o ISG, seção britânica do Secretariado Unificado, que dão a razão e defendem o caráter eleitoral e reformista do RESPECT.

[50] Disse a direção do SWP: “O êxito eleitoral levou a algo familiar para pessoas que pertenceram ao Labour Party, mas que eram completamente novas na esquerda não trabalhista: o oportunismo eleitoral começou a dominar o RESPECT. Inclusive houve casos de indivíduos que diziam que se não fossem candidatos do RESPECT se apresentariam por outros partidos políticos – e um dos vereadores do RESPECT do distrito de Towe Hamlets fez efetivamente isso se ligando ao trabalhismo depois de ser eleito”.

[51] L.Trotsky, “Los movimientos obreros en Estados Unidos y Europa: una comparación”,Maio de 1938, Curx, pág 137.

[52] R. Rossanda, “De Marx a Marx: clase y partido”, Teoría Marxista del Partido Político N° 3, México, Pasado y Presente, 1987, pág. 14.

[53] Para uma visão mais profunda sobre esse tema ver “Lenin e a história do Partido Bolchevique”, em La Verdad Obrera, maio-junho de 2006.

[54] V. I. Lenin, O esquerdismo, doença infantil do comunismo, Buenos Aires, Anteo, 1985.

[55] L. Trotsky, “Nuestras diferencias” (junho de 1909), 1905, Buenos Aires, CEIP, 2006. pág. 345-6.

[56] L. Trotsky, Op. cit.

[57] Um dos principais dirigentes desta corrente, Orlando Chirino, defendeu uma política de voto nulo no plebiscito sobre a reforma constitucional de dezembro de 2007. Ainda que o partido ao qual pertencia, o dissolvido PRS (Partido de la Revolución Socialista) tenha chamado a votar em Chávez nas últimas eleições presidenciais, diferente de outras correntes que formavam esse partido, o setor encabeçado por Chirino não ingressou no partido chavista, o PSUV.

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