FT-CI

Do levantamento de junho ao desvio eleitoral

Em direção a um governo do MAS?

07/10/2005

Depois do levantamento de junho que derrubou Carlos Mesa, e impediu que o “mirista” Hormando Vaca Diez o sucedesse, o processo político foi canalizado para as eleições gerais do próximo 4 de dezembro. A ajuda do MAS e outras forças menores foi decisiva para desmobilizar as massas e conduzir sua energia e expectativas para este “desvio”.

Segundo García Linera, candidato a vice-presidente pelo MAS, esta saída mostraria a Bolívia como um “laboratório de inclusão democrática ”, com a possibilidade de que Evo Morales seja o “primeiro presidente indígena da Bolívia e América Latina”. Na realidade, o projeto reformista do MAS busca semear a ilusão de que com reformas constitucionais e conciliando com os grandes proprietários e as transnacionais, se poderá satisfazer as demandas mais sentidas das massas do campo e da cidade, como é a nacionalização do gás... que o próprio MAS rechaçou. O MAS postula uma grande frente-popular de colaboração de classes com a burguesia nacional, ã qual subordina os “movimentos sociais” e suas demandas. Longe de abrir caminho para a libertação nacional e as demandas pelas quais se combateu em outubro e junho, Evo Morales quer impor um dique de contenção reformista para evitar que a pressão das massas transborde a democracia burguesa e avance em direção ã revolução operária e camponesa.

Entretanto, o MAS está se fortalecendo eleitoralmente e atraindo a simpatia de amplos setores de massas, inclusive entre aqueles que o criticaram por suas traições nas mobilizações de maio e junho. É possível que apesar do receio da classe dominante, chegue ao governo. Mas um governo do MAS abriria uma etapa de reformas “na democracia” e satisfaria os trabalhadores, camponeses, e os povos originários? Ou, antes, seria uma nova fase de obrigada experiência das massas no caminho a enfrentamentos decisivos entre a revolução e a contra-revolução? O processo revolucionário iniciado com o levantamento de Outubro de 2003 está longe de ter se fechado.

Os dramáticos acontecimentos de maio/junho deste ano podem ser vistos como um segundo “ensaio revolucionário” neste processo, e ao mesmo tempo, como uma segunda “advertência” para as massas operárias e populares. Ante uma nova etapa do processo político a vanguarda não pode esquecer suas lições e preparar-se para os futuros combates, e a isto se agrega uma tarefa política imediata: opor aos “cantos de sereia” do MAS e outras variantes frentepopulistas, a luta pela organização política independente dos trabalhadores em torno de uma saída operária e camponesa de fundo para a crise nacional. Este é o único caminho para a vitória.

I. Um novo “desvio” no processo revolucionário

Para o observador desprevenido pode parecer contrastante a amplitude e radicalização do auge de massas que derrubou dois governos - o de Sánchez de Losada em outubro de 2003 e o de seu sucessor “progressista”, Carlos Mesa, em junho - com a aparente facilidade com que uma classe dominante tão débil como a burguesia boliviana consegue impor saídas, ao menos provisórias, como é o atual “desvio eleitoral”.

Nisto se expressam as contradições entre a extrema maturidade das condições objetivas que empurram em direção ã revolução (a aguda “crise nacional geral”, a crescente decomposição do regime político-estatal, o auge de massas), e a relativa imaturidade das “pré-condições subjetivas”. Apesar das massas terem mostrado - e como! - sua combatividade, não conseguiram deferir golpes decisivos ao regime burguês, devido ao papel traidor do MAS e de outras direções reformistas ã frente das organizações das massas insurgentes: COB, sindicatos, FEJUVE e COR altenhas, etc. Assim, pode dizer-se que a “situação chega a ser revolucionária o quanto pode com o freio conscientemente imposto por reformistas, populistas e burocratas sindicais”.

É por isso que as heróicas ações historicamente independentes das massas, como as jornadas revolucionárias de Outubro e em Junho, não conseguiram se transformar na “revolução mesma”, isto é, desarticular o andaime do Estado burguês uma luta direta pelo poder operário e camponês. É por isso também que a classe dominante, apesar de suas divisões internas e debilidade, segue contando com margens de manobra para utilizar os decadentes mecanismos de uma democracia burguesa em crise. Ainda que exista o risco de cair na “recorrência” periódica dos levantamentos (como ocorre também no Equador), e é inevitável de fato que as massas devam passar por uma nova fase de experiências com as reformas democráticas (como uma assembléia constituinte) e, governos de frente-popular como o que propõe o MAS, este é também o terreno no qual se forjará a experiência, organização e consciência do movimento operário e de massas para as tarefas da revolução.

II.- As jornadas de junho

Este avanço relativo se fez visível nas Jornadas de Junho, após um ano e meio de experiência com as promessas “progressistas” do governo de Carlos Mesa (sustentado pelo MAS). Sem fazer aqui um balanço exaustivo, há que assinalar que nesta nova crise revolucionária a amplitude, profundidade e radicalização da mobilização de massas (que novamente teve como epicentro El Alto) não só derrubou Mesa e impediu que Vaca Diez assumisse (sucessor como presidente do senado), senão que ameaçava o próprio regime de conjunto. Ainda que não se chegou a níveis de enfrentamento militar como em Outubro, re-emergiram as tendências ã guerra civil, enquanto que um poder dual embrionário começava a surgir ao calor do levantamento (refletido pelas organizações de base como as juntas vicinais, com suas barricadas e piquetes, como em Outubro de 2003) e crescia a idéias de uma “assembléia popular” (em 8 de junho em uma reunião em El Alto chamada pela COB, se lançou uma “Assembléia Popular nacional e originária ” •. Ali se discutiu também a criação - não efetivada - de comitês de abastecimento (...) não concretizada pela deserção dos dirigentes). A crise revolucionária de vários dias - entre a derrubada do governo Mesa e a “sucessão constitucional” do dia 10 em Sucre - colocou objetivamente o problema do poder e a luta por um governo operário e camponês. Entretanto, como em Outubro, o MAS sustentou o regime cambaleante, apoiou a sucessão de Rodríguez e chamou a desmobilizar. Os dirigentes tidos como “radicais” (como a COB ou a FEJUVE e COR altenhas) se negaram a dar uma perspectiva política independente ao levantamento, desnudando uma vez mais que por trás dos discursos “vermelhos” não há mais que a estratégia de pressionar e conciliar com setores da burguesia.

Como nenhuma das direções se propôs a preparar política e organizativamente esta perspectiva antes, nem durante o levantamento e todas terminaram capitulando ante o regime e a “solução de Sucre”, se desperdiçou uma nova e magnífica ocasião para as massas assestarem um golpe decisivo ao regime e suas instituições (inclusive quebrando a polícia e as Forças Armadas), que poderia ter aberto as portas a uma fase de luta direta pelo governo operário e camponês...

Ainda que a politização e questionamento ao regime por parte de setores avançados se manifestaram no repúdio a Mesa e Vaca Diez, a demanda de fechamento do Parlamento e as consignas de um “governo do povo” ou um “governo operário e camponês” nas mobilizações, assim como nas críticas ao papel de freio do MAS, a vanguarda careceu de toda alternativa de direção operária revolucionária em torno ã qual se reagrupar para superar os obstáculos reformistas.

III. O desvio eleitoral e o processo profundo

Assim, pese o embate de massas e graças, sobretudo ã traição das direções reformistas, a burguesia conseguiu fechar a crise revolucionária com a “sucessão constitucional” através de Eduardo Rodríguez, o presidente da Corte Suprema de Justiça, e acordar o “desvio eleitoral” canalizando a atenção das massas (e suas próprias disputas internas) para as eleições gerais de 4 de dezembro (adiantamento de eleições implica uma certa concessão, ao permitir renovar pelo voto todo o elenco político e eleger pela primeira vez prefeitos departamentais) seguidas por uma Assembléia Constituinte para meados de 2006. Rodríguez encabeça um débil “governo de transição” com a tarefa de viabilizar esta saída. A classe dominante pôde assim “pacificar” notavelmente a situação, ainda que não dissipar o horizonte de crise e decomposição política e estatal.

O primeiro problema político que se apresenta é o ascenso eleitoral do MAS. Apesar de seus bons serviços e do esforço de Evo por mostrar-se como “confiável” e “pragmático”, a burguesia não quer um governo do MAS, que poderia alentar as expectativas e demandas das massas em ascenso.

O intento de polarizar entre o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga (acompanhando por Ortiz, ex-gerente da CAINCO, organização dos agroindustriais cruzenhos) e sua “Asociación Siglo XXI” como garantia da continuidade neoliberal contra o MAS, não termina de se afirmar e pode haver dispersão eleitoral com a centro-direita da UM (Unidad Nacional, de Doria Medina - ‘barão do cimento” - e o cívico cruzenho Dabdoub); intenta mediar também o centro-esquerdista Frente Amplio de René Joaquino (prefeito de Potosí), junto a vários prefeitos e deputados que apoiaram Mesa. Por outro lado, os partidos tradicionais - MNR, MIR, NFR - “lutam para sobreviver” em meio a sua decomposição e a extrema direita cruzenha também aparece debilitada. De conjunto, o espectro político eleitoral se move em direção ao centro, buscando recompor o terreno do “jogo democrático”.

As pesquisas localizam Quiroga e Evo praticamente empatados, o que torna provável uma primeira minoria para o MAS que faria difícil impedir sua chegada ao governo (segundo as leis bolivianas, será o novo parlamento o que definirá a presidência entre os candidatos mais votados, se não houver maioria absoluta). Isto pode derivar em uma futura crise política, ainda que para os tempos políticos bolivianos, dezembro está ainda muito longe e não é o momento de fazer prognósticos.

Há um amplo processo de politização de massas e giro ã esquerda que o “desvio” eleitoral pode deformar e canalizar circunstancialmente, mas não suprimir. Assim, nos mais diversos setores se discute como intervir na política - artesãos, camponeses, a COB, juntas vicinais, etc, discutiram em algum grau seu próprio “instrumento”.

Por outro lado, pese o clima pré-eleitoral e após algumas semanas de certa calma social, ressurgiram conflitos nos mais diversos setores. Não só paralizações cívicas e bloqueios de estradas por demandas regionais em Camiri, Yacuiba, Lahuachaca, etc.; ou tensão por terras em disputa entre empresários e camponeses em Santa Cruz (onde segue tomada Las Pailas e outros prédios pelo MST - B), no norte de La Paz e outros lugares; mas também paralisações dos médicos e em hospitais como o Tórax, greve de trabalhadores judiciais, exigências dos mestres urbanos, uma semana de paralisação dos mineiros de Huanuni, paralisação de 24 hrs nos petroleiros de Senkata e YPFB, resistência a demissões em AASANA e COTEL. É de destacar que pode estar se gestando nestas lutas (e em debates como o de um instrumento político próprio dos trabalhadores na COB e os sindicatos), tendências a um maior protagonismo dos trabalhadores assalariados.

IV. O MAS prepara a falácia da frente-popular

O MAS se fortalece capitalizando o descontentamento de amplos setores d massas, e inclusive o giro ã esquerda de setores das camadas médias urbanas. O MAS é hoje o principal partido nacional, ainda que sua atuação como “pata esquerda do regime sob Mesa e em cada crise, como em Junho, lhe promova rechaço entre alguns setores de vanguarda. Agora, inclusive setores críticos vêem com simpatia a possibilidade de um governo de Evo Morales, na ausência de uma alternativa operária e socialista e estão se somando a seu projeto outros “movimentos sociais”, como a COR e FEJUVE altenhas. O candidato ã vice-presidência, Álvaro García Linera, analista político e sociólogo com um passado radical (pese vários anos acusado de atividades guerrilheiras nos anos 90) funciona como ponte ã outros setores sindicais e ás camadas da pequena-burguesia “progressista”.

O projeto político do MAS é o das “reformas democráticas”, no marco da democracia burguesa. Isto o demonstra seu “programa de governo”, que não é sequer nacionalista, apenas timidamente “desenvolvimentista” no econômico: não propõe a liquidação do latifúndio (sem o qual é impossível satisfazer a demanda de terra e território de camponeses e indígenas), promove aos empresários “nacionais” (o qual impede atender as demandas operárias), aceita cumprir com a dívida externa e assim sucessivamente. Ademais, a “reinvenção da democracia boliviana” como propõe García Linera através de uma Assembléia Constituinte sem afetar a propriedade das transnacionais, os proprietários de terras e o empresariado só pode frustrar as legítimas aspirações democráticas das maiorias exploradas e indígenas.

Não ã toa Evo Morales declara que considera Lula como um “irmão maior” e um exemplo. Este é o modelo de “gestão do estado capitalista” para o que se prepara e em nome do qual oferece todo tipo de garantias ã classe dominante.
Em essência, este é o projeto de uma “frente-popular”, com figurões da classe média, “profissionais e micro-empresários”, que são a “sombra da burguesia” e subordinando o movimento de massas e suas demandas a esta aliança, para contê-las e separá-las do caminho da mobilização revolucionária e salvar a democracia burguesa.
Entretanto, pese suas “boas intenções”, um governo do MAS poderia chocar com a hostilidade de setores burgueses que vêem como arriscado um governo de frente-popular e desconfiam de “um índio na presidência”, enquanto que as ilusões das massas podem se transformar em mobilização por suas demandas mais sentidas. Assim, ainda que ao princípio conte com amplo apoio e possa se apoiar em uma Assembléia Constituinte, Evo, em lugar de ser um “Lula” - não em vão a convulsionada Bolívia não é Brasil - pode acabar preso entre as forças antagônicas das massas e da burguesia, empurrado pela via da “allendização” . A necessidade de retomar as lições de outubro e junho: a auto-organização, a mobilização geral, a entrada em cena de órgãos de poder e o armamento popular, ressurgirá com força para derrotar a reação burguesa e imperialista e superar o reformismo do MAS no caminho de um verdadeiro governo operário e camponês.

V. Defender a independência política dos trabalhadores para retomar o caminho de Outubro e Junho

Por tudo isso, longe de adaptar-se ao “mal menor” em nome de que um governo de Evo Morales seria depois de tudo “mais favorável”, é preciso retomar o caminho da mobilização e organização de massas, confiando só em suas próprias forças e seus próprios objetivos. Um primeiro passo é a necessidade de unificar os conflitos em curso com um plano de luta pelas urgentes demandas operárias e camponesas, como o aumento salarial, a derrubada do artigo 55 (livre contratação) e demais reivindicações. Não há razão para que sejam postergadas pelo governo pró-imperialista de Rodríguez e a burguesia com o argumento das eleições.

Mas isto não basta. Há que opor ao MAS uma clara alternativa política dos trabalhadores, que utilize também o terreno eleitoral para denunciar o regime e reagrupar forças. Lamentavelmente, o debate sobre a criação de um “instrumento político dos trabalhadores” da COB para defender a independência de classe corre o risco de ficar nisso, em debate apenas, pela inconseqüência e a deserção dos dirigentes oportunistas.

Entretanto, segue colocada a luta pela organização política independente da classe operária, como pode ser através de um instrumento político dos trabalhadores baseado na COB e nos sindicatos, com plena democracia operária e com um programa para impor uma saída operária e camponesa ã crise nacional, que retome as mais progressivas moções de Outubro e Junho: a construção de uma genuína Assembléia Popular e a luta insurrecional pelo Governo Operário e Camponês como única garantia para impor a nacionalização do gás e o conjunto das demandas operárias, camponesas, indígenas e populares. Chamamos a vanguarda operária, aos jovens combativos, as correntes operárias e socialistas a somar forças nesta perspectiva.

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